Roberto
acordou com o grito. Não sabe de onde veio. Isso vem ocorrendo há
trinta dias.
Tinha
sido na terça-feira de noite, antes das vinte e uma horas. Voltava
da casa do Rodolfo. Foi a convite de uma velha amiga de escola.
Aproveitou os comes e bebes. Mulheres desfilando belezas e
formosuras, além da namorada do dono da casa, moça atraente que
chamava atenção dos homens.
Não
gostou e nem se agradou do dono da casa. Que ria escandalosamente,
gestos com os braços, piadas sem tom. Ficara boquiaberto com a
falsidade dos convidados, que riam de qualquer assunto que Rodolfo
falava e que possuía uma péssima interpretação.
Roberto
ficou à vontade. Bebendo champanhe e beliscando uns canapés,
casquinhas de siris e pequenas porções que ele não gostava tanto.
Sem atrair os olhares, perambulava pela sala arejada, anotando com
olhar crítico a decoração retrô de mal gosto.
Sua
amiga, que havia dado o convite, encontrava-se em outro evento. Era a
garota dos eventos na cidade, onde umas clicadas aqui e ali, em redes
sociais e notícias na alta sociedade, se achava a Liz Taylor
tupiniquim. Roberto se desagradava das loucuras da garota. Nunca
aceitou o jeito de se demonstrar ou se aparecer com uma ridícula
caipira famosa do interior. E detestava os que apoiavam, como se
fosse divertido comentar um espirro extravagante dela.
Ele
bebia e comia de graça, rindo do dono e reparando que o rapaz, era
um arrogante filho da mãe.
Uma
hora depois, os puxa-sacos raptaram Rodolfo para uma salinha.
Praticamente uma partida de póquer. Ou um planejamento de dizimação
da humanidade. Nunca se sabe o que esses endinheirados mimados pensam
e aprendem por aí, não é de se duvidar que saiam admirando a
desgraça dos coitados.
Roberto
sentira uma pontinha de inveja. Pensara em fazer amizade fingida com
Rodolfo. Muito bem. Tinha ouvidos lavados e limpos, não era expert
em arte, filosofia, politica e conspirações de dominação global.
O que não era necessário para conquistar um cidadão, que vive de
festas com gente gargalhando das piadas sem graça dele.
– Te
conheço?
Se
assustou ao escutar a voz atrás dele. E quando virou, se assustou
mais ainda.
A
resposta demorou preciosos segundos. Ficara estudando a maneira de
agir. Não era fácil, na sua frente, a namorada do Rodolfo.
– Acho
que não. – Respondeu com uma cara de pau séria, reparando no
decote extravagante que ela exibia.
– Desconfiei
desde que o vi. E reparei que não entrou acompanhado. – Disse,
encarando como uma fiscalizadora maliciosa.
– Uma
amiga deu-me o convite. Está bonito, estou gostando de tudo.
– E
quem seria a amiga generosa? E por favor, sem hipocrisia. De que
merda acha que aqui está bom? Admito as falsidades dos amigos de
Rodolfo, umas bostas saídas do rabo dele. Mas, de desconhecidos, não
soa muito legal, não.
E
não queria se encantar pela moça. Loira, de olhos verdes, usando
decote numa blusinha preta com babado, lábios carnudos e o famoso
batom vermelho.
– Minha
amiga se chama Rose. – Falou.
– Rose…
Tentando lembrar quem seria… Ah, a menina caipira famosa?
– Sim.
Ela mesma.
Rodolfo
se envergonhou ao perceber que era amigo de uma amiga ridiculamente
falada.
– Acompanha-me
numa taça de champanhe? Não é bom, numa reunião, uma dama beber e
conversar com um cavalheiro, sem nenhuma bebida entre eles.
Roberto
aceitou acompanhá-la e a falar de coisas não chatas. O clima não
se limitava de assuntos sem interesses. Não retirava a atenção dos
olhos verdes dela. Seguia a movimentação da boca. A expressão
irônica, critica e maldosa e sem remorso.
– Espere.
Juro que não demoro. – Disse ela.
– Ei,
onde vai?
Não
queria largar. Parecia que sua metade, partia-se com o afastamento
dela. Talvez uma dependência estranha que ele não compreendia. E
que não se acostumou a sentir.
Ficou
a ver os convidados. Uma música preenchia o ar, e a curiosidade de
saber o que rolava na outra sala, o deixara nervoso.
Ela
voltou de roupa nova. Estava de vestido curto verde-abacate. Seu
corpo se desenhava linha por linha. Pegou na mão dele, e sem se
importar com o pessoal, o puxou firme.
– Vem!
– O perfume deixava rastros por onde passavam.
No
fim, entraram no quarto. Envolvido, permitiu que prosseguisse e
lançou um que se dane. Por dentro, gargalhou de Rodolfo. Era o
maioral da reunião.
E
tudo feito em pé. Já que ela preferiu e que não queria, desarrumar
a cama.
Quando
voltaram, a festa continuava. O sumiço não chamou a atenção de
ninguém, e Rodolfo havia encerrado a partida de póquer. Bebia e
ria, escancarando sua boca exagerada.
A
namorada levou Roberto no lugar que se encontrava Rodolfo. Ela beijou
o namorado e ele sem entender, reparou que não conhecia o rapaz que
a moça trouxera.
– Quem
é ele? – Perguntou.
– Um
desconhecido, que encontrei perdido. – Respondeu a loira, abraçando
carinhosamente o namorado.
– Seja
bem-vindo, moço desconhecido. Sinceramente, não te conheço de
nenhum lugar. – Disse Rodolfo, beliscando um pedaço de queijo
prato em cubinho.
– Ganhei
o convite de uma amiga. O nome dela é Rose. É um prazer conhecê-lo.
Roberto
estendeu a mão para Rodolfo, que olhou e nem retribuiu a gentileza.
– Humm,
Rose? Que Rose? Eu conheço alguma Rose, minha lindinha?
– Aquela
menina caipira, esqueceu é?
– Ah,
essa? Ela é muito conhecida na região.
Soltou
uma tremenda gargalhada, rindo da garota. Os puxa-sacos o
acompanharam e Rodolfo se sentiu mal. Sentia uma pontada no peito ao
saber que conhecia uma amiga caipira famosa. Só não aprovou a
risada do babaca. Desejava jogar na cara, que havia transado com a
namorada, não na cama, e em pé. Mas, Rodolfo, era uma bosta, que
merecia porrada pra aprender a ser gente.
– Desculpa-me.
Juro que não fiz por mal. – Disse Rodolfo para Roberto.
– Esquenta
não. Não ligo pra isso. – Respondeu Roberto. Porém, por dentro,
queria dizer umas boas verdades para o playboyzinho.
– Meu
tempo por aqui se encerrou. – Disse Roberto olhando diretamente
para a loira, que deixou de abraçar o namorado playboy.
– Que
isso, mocinho. Falta de delicadeza, deixar a dama sozinha. – Disse
a loira ao se aproximar perto de Roberto.
– Minha
lindinha, não é merecedora de solidão. – Completou Rodolfo,
mexendo nos cabelos lisos pretos.
– Tenho
compromisso na parte da manhã. – Explicou Roberto.
– Que
lástima, levantar cedo. Isso não é vida, é sofrimento. –
Rodolfo soltou um risinho irônico e com olhar malicioso, encarou
Roberto.
– Eu
te acompanho, até lá fora. – Disse a moça, tomando a dianteira.
– Esteja
convidado a retornar, meu caro, rapaz. – Disse Rodolfo se ajeitando
e alisando os cabelos.
Bastaria
levar a loira. Terminar o que começara. Na casa dele, a cama era
livre. Só não estava em boas condições. Podia-se realizar uma
transa gostosa. Sim, levaria ela, passariam a noite. E o que
importava para ele, ela e o bobo do Rodolfo? Nem sentiria a falta da
namorada. Haveria gente rindo, fingindo acreditar em tudo que
recitasse. Esqueceria até que namorava, que a garota nem seria dele.
– E
então, me largará sozinha?
– Você
tem o namorado. – Disse Roberto.
– Rodolfo
não necessita de mim lá dentro. Enquanto houver merdas aos seus
pés, serei uma invisível. Isso chateia, leva-me ao tédio sabia?
Mas vá, mesmo eu não querendo. Não sou de prender, não faz meu
tipo de jogo.
Houve
um rápido selinho pra selar a despedida e Roberto tomou o caminho de
casa. E tudo aconteceu há trinta dias.
E
nisso, entrou o grito.
Roberto
tinha se arrumado para deitar, quando o grito surgiu. Estridente e
feminino. Rasgado e de tom agudo. Berro de mulher, não havia dúvidas
e incertezas.
Aguardou
o movimento do prédio, mas nada escutou. Parecia que dormiam, apesar
das vinte e duas horas. Não, nenhum ruido, nenhuma movimentação
dos vizinhos e andares acima e abaixo.
E
o grito continuava. Alto. O importante era que não irritava, bem
calmo, e que não demonstrava desespero.
No
dia seguinte, Roberto comentou com o síndico, que deu a entender que
não escutara. Com o zelador, o olhar de justiça do velho cismado,
retirou a vontade de expandir a conversa. O velho só aliviou quando
começaram a falar do time do coração dele. Com uma total cautela
de cuidados.
E
o grito, que no começo não incomodava, passados os dias, não
apontava nenhuma admiração em Roberto. O bendito vinha nas horas
inconvenientes, que qualquer um reclamaria.
E
foi o que Roberto fez e ninguém o levou a sério, jogando indiretas
de que não estava bem de saúde. O que o deixara furioso.
O
grito fizera perder a concentração. No trabalho, as conversas com
os amigos perdiam-se em esquecimentos e sonolências. Da amiga
caipira famosa, mal prestava atenção na espontaneidade que ela
tratava dos eventos na cidade. A voz dela o perturbava. Mas era o
grito, que não cessava de martelar como uma hipnose desconcertante.
Não
deu outra, com raiva e determinado, decidiu combater o grito
misterioso.
Se
reforçou num pesado café da manhã. Como era dia de folga,
aproveitou pra dormir mais. Uma meia hora e pouquinho por aí. Se
vestiu, penteou os cabelos, calçou o tênis Adidas e saiu em missão.
Naturalmente
que se fosse contar ou cochichasse com algum morador, a resposta
geraria protesto e renúncia. Por desconfiar, propôs a si mesmo
calar-se, sem alardear o síndico e o velho zelador.
Começara
pelos andares de baixo, batendo e batendo nos dormitórios. Ele não
negava o constrangimento, de entrar e vasculhar e desvendar o
mistério.
Fora
a vergonha dos moradores. Teve gente que socou a porta e senhoras
assanhadas tentando ganhar alguma vantagem extra. O resultado foi
mero desperdício.
E
o síndico estivera a bater à porta de Roberto. Que falou um monte,
de palavras cuspidas, de receber reclamações. Que isso não se
repetisse. Disse o homem no final.
Na
parte da tarde, pelas quinze horas, o grito voltou do jeito que
apareceu.
Roberto
abriu a porta, com a intensão de encontrar uma pessoa andando no
corredor. Não encontrou ninguém.
O
grito continuava no mesmo nível de altura. Então lembrou de que
faltara um número, no andar de cima. Esquecera e era o único que
faltava dos dormitórios.
Subiu
três lotes de escadas correndo. Seu folego estava bem. Recordou que
era bom não ser fumante, não faltava energia. E o grito emitia o
barulho estridente. Como nenhum morador reclamou do berro? Finalmente
na porta. Número par. Um número par qualquer. O morador, um senhor
de setenta anos, vivendo sozinho. Uma morena de trinta anos, pagara
adiantado o valor do dormitório. Não se sabe, se era filha ou
parenta. Viera do interior, da fronteira do Paraná.
Ali
estava o grito. Roberto apertou a campainha demoradamente. Como não
tivera resposta, batera na porta. Fraco, forte, exagerado. Nada.
Chamou o síndico.
O
homenzinho veio, batendo o pé, reclamando como um rádio velho.
Chamou a atenção do pessoal, pra reclamarem com Roberto, de
atrapalhar o sossego e a paz de todos. Roberto pediu que o síndico
abrisse a porta. E assim o fez.
Ao
abrir, o senhor, de estatura média, careca e de óculos sentado numa
poltrona solitária. De olhos fechados e cabeça baixa, dormia.
Morto. O ambiente fedia, fedia demais. A maioria correu desesperada e
com náusea.
O
grito silenciou. Um aparelho de som, programado para acionar nos
horários determinados. Roberto lançou o objeto ao chão, que
espatifou sem piedade. O síndico reclamou do ato impulsivo. Seria a
prova. No final, concordou com o rapaz, falando bem dele para a
polícia. Caso encerrado.
Dois
dias depois, de noite, às vinte e uma horas, uma visita bateu no
número de Roberto.
Tinha
esquecido dela, do corpo, dos cabelos longos, lábios carnudos, de
tudo de bom que havia. A namorada do Rodolfo. De vestido branco
curto. Batom rosa provocante.
– Sua
amiga Rose que passou o endereço. Tadinha, preocupada com você.
Acreditaria que também senti o mesmo? – Disse mostrando os olhos
verdes iluminados.
– Sim,
acredito. Sinceramente estou bem. Foi apenas um probleminha que se
resolveu.
– Ah,
que bom que deu certo. Não falaremos de problemas. Nem os teus e nem
dos meus.
Enlaçou
os braços em Roberto, que surpreso, permitiu se levar. E ela,
descobrindo a abertura, aproximou a sua boca na dele.
– Muita
saudade tua, sabia? – Disse, a voz sedutora e provocadora.
– Onde
quer chegar? E Rodolfo?
– Ah,
meu lindo desconhecido. Esquecemos essa parte da minha vida.
Continuemos o que paramos naquele dia, e que as horas voam e voam.
Ah,
que se dane! A loira era tudo de bom. Se soltou, não estava mais
contraído, deixou o ritmo seguir o curso. Por dentro, gargalhava,
gargalhava de tudo e de todos. Possuía o grito mais pulsante e
vitorioso da cidade. E assim se sucedeu.
(Rod.
Arcadia)