O
que é a morte?
O
que significa?
Por
que morremos?
Tempos
atrás, uma menina de nove anos perguntou sobre a morte. Da razão de
levar as pessoas que amamos.
Não
encontrei respostas. Respondi que morte seria o vazio, o nada
existente.
Comentou
que uma menina de sete anos morreu de tanto apanhar da mãe. Era a
morte ou a violência que fez a criança morrer? Não respondi, não
achei resposta coerente e pensei:
Quem
tira a vida, nós ou a morte? Quem dá o disparo, nós ou a morte?
Quando
pequeno meu cãozinho morreu. Papai consolou, dizendo que o animal
ficaria bem e em paz.
Então
a morte salvou o cãozinho do sofrimento? Ou a doença entregou de
bandeja pra ela?
Ela
traz questões, reflexões e apontamentos, saudades e lágrimas.
Papai.
Hoje levantei cedo. Vou visitá-lo. Há anos que não o visito.
Brigamos.
Caminho,
observo pessoas, movimentos e expressões. Penso na vida, o que
recebi dela.
Ontem,
na hora do almoço apareceu uma moça. Tinha vinte ou dezoito anos.
Branca, olhos de girassol, cabelo de margarida e guirlanda na cabeça,
vestido branco de cetim. Voz serena, como o orvalho das manhãs de
outubro.
–
Jacó.
Teu pai… Precisa vê-lo. Vá à casa de teu pai, Jacó.
Não
a conheço, nem sei o nome e veio falar de papai.
–
Não
se atrase. Ou será tarde demais.
Arrumei-me,
avisei a inquilina que talvez voltasse só amanhã.
–
Aonde
vai?
–
Ver
meu pai.
Não
é longe. Resolvo ir a pé, olhar pessoas, o modo de agirem e se
comportarem.
E
quem seria ela a falar de papai? Sabia quem eu era.
Quis
saber. Não deu. Desapareceu. Evaporou.
Arrisquei
de perguntar a inquilina.
–
Não
quero putaria por aqui, entendeu? Ou terei que ser mais clara?
Não
precisei continuar. Não a viu. Fiquei de mãos vazias.
Não
sei como surgiu.
Hoje
acordei pensando no velho. Nos anos que afastamos, da solidão que
tornou amante de ambos.
E
ela alertou da saúde do papai.
–
Não
está nada bem. Visite-o, Jacó.
Aparento
aparência proustiana, andar calmo em passos vagarosos e filosóficos.
Lembro-me
do rei, que no matinal passeio encontrou a morte. Quando o acharam,
possuía serenidade e um belo sorriso.
O
passeio foi precursor e presenteou com o toque da morte. Não que o
monarca estivesse enfermo, naquele momento, a ceifadora da vida
carregou-o para os teus domínios.
Há
o caso da noiva. A senhora que perdeu o noivo no dia do casamento.
Nunca mais tirou o vestido, envelheceu. Nem permitiu amor entrar no
coração. Ficou solitária, primavera sem emoção.
Certo
dia levantou, alguém que não se sabe perguntou:
–
O
que deseja?
–
Nada.
Aprovo o simples. Sou simplicidade em pessoa.
Encontraram
na cadeira de repouso. Segurava fotografia do amado, arrumada e
enfeitada. Não sofreu, não teve dor. Faleceu na simplicidade.
A
morte aplica o toque gélido.
O
rico avarento conheceu num dia bom. Havia ganhado uma quantia em
moedas. Comemorando, deu de cara com o estranho de terno escuro,
branco e pálido. Muitos comentavam que procurava o avarento.
Dois
dias depois, foi encontrado morto afundado na montanha de moedas.
A
quem diz que o rosto era apavorante, susto e demência. Faleceu na
própria fortuna.
Já
o estranho, não chegou a ser mais visto.
Meu
velho e eu nos afastamos. Faz anos. Na verdade, eu me afastei.
A
gente discutiu. Fiz as malas, virei nômade, retornei para São José
dos Campos e não me mudei mais.
Papai
soube, por orgulho, não veio me procurar.
Também
por orgulho, fiz a mesma coisa.
Uma
antiga namorada quis saber.
Mês
de junho, bastante frio e questionou a relação de meu pai comigo.
–
O
que houve entre vocês?
–
Brigamos
e estamos brigados.
–
Qual
motivo?
–
A
gente amou a mesma mulher.
Faz
anos. Caminho para revê-lo.
Uma
estranha avisou que ele não está bem de saúde.
–
Não
se atrase. Ou será tarde demais.
Tem
pessoas que enganam a morte.
O
velho chinês escolheu esse método.
Por
castigo e ter sido enganada, amaldiçoou com muitos anos de vida.
Presenciou
entes queridos morrerem. A cada ano falecia, dando ao velho a solidão
de conviver e presenciar quem ele amava indo para nunca mais voltar.
Há
aqueles que a morte nem se aproxima. Ou porque o seu toque não traz
efeito.
Assim
era o imortal.
Pessoas
nasciam e faleciam, o imortal vivo.
Testemunhou
guerras, chagas, pragas e revoluções.
As
épocas trafegando nos olhos.
Teve
amantes, esposas e não gerou filhos. O homem que não morria,
lamentava.
Como
o velho chinês, porém, não trapaceou. Sofria, as pessoas que amava
morriam.
–
Imortalidade?
Não é dom, força ou maldição. Traz nada de satisfatório. É
Amargura.
Sou morto que não morre e não tem descanso e paz.
Andando,
pensando no dia que sai de casa.
Mês
de maio, meu velho bravejava injurias e ingratidões. Estávamos
exaltados de raiva e cólera. Peguei o caminho e andei sem direção.
Entrei no hotel. Ao amanhecer, peguei ônibus para Jacareí, o começo
das repetidas mudanças.
O
motivo da discussão foi tragédia. Alias, afetou demais em mim. O
caso era típico enredo de histórias românticas. Tem horas que me
culpo de ter trazido o trauma. Decidi que a melhor solução seria
distanciar.
Arranjei
um lugar, uma inquilina que implica, mas é boa gente. Tem vezes que
saio em socorro para acudi-la nas crises de bronquite. A pobre não
larga do maço de cigarros. Fuma as escondidas, tosse e pigarra a
garganta.
–
A
senhora pode contrair câncer ou outra espécie de enfermidade.
–
Que
se dane. Sabe Jacó, antes de morrer, mamãe realizou seu último
fumo no cachimbo de estimação. Lembro até hoje, a voz calma.
“Pegue
o cachimbo na gaveta. Prepare o fumo. Morrerei, não é verdade? Que
a morte aguarde bocadinho pra ter tempo de dar a tragada.”
–
Não
morreu de tabagismo ou coisa nesse sentido. Realizou a vontade.
Mamãe… Que esteja bem no céu.
E
lá ia eu salvá-la. Sabendo do que fazia as escondidas.
Encontro-me
na esquina da rua de meu pai. Gera lembranças. Infância trafegada
no afasto. Eu, ele, mamãe e a mulher que amávamos.
Com
mamãe tive poucos momentos. Confesso que recordo vagamente. Afinal,
era bem pequeno. Depois, crescido, foram constantes correrias,
tombos, passeios, piruetas e cambalhotas, encontros na véspera de
natal e o ano novo, o carnaval, a festa dos santos-reis, o mês
junino e as quadrilhas, a copa do mundo. As celebrações.
Antes,
contarei dois casos.
O
primeiro era o louco barão, que fascinado construiu um casarão e
nele criou leões.
Os
animais domesticados num extenso aposento, alimentados, cuidados e
preparados.
A
loucura era grandiosa. Inocentes empregados viraram refeições.
Chegaram a sequestrar filhos de moradores.
E
na comemoração de aniversario o louco abraçou a morte.
Era
aniversario de 40 anos.
Ordenou
dias antes para não alimentar as crias.
Convidou
aristocratas, burgueses e intelectuais. Até o clérigo.
Ninguém
sabia das intenções. Nenhum convidado desconfiou.
Sim.
Convidou à alta gente, para presenciar o desejo, vontade de ser
devorado, comido e dilacerado.
Atormentados
pela insanidade e impedidos de saírem, assistiram o que a mente
humana proporcionou.
Viram
o doido nu na jaula.
Dentro,
leões famintos. Nem se deu a pachorra de esboçar uma sílaba, foi
ligeiramente atacado e devorado.
Tempos
depois, por ordem do governo, o casarão tombou.
Uma
maneira de evitar lembrar-se do grotesco e insano dia e para não
manchar a reputação da cidade.
Mas
o caso surpreendente ocorreu no estado do nordeste, no recanto
sertanejo, no sertão. Que por decisão, a cidade deixou de existir.
Havia
o fanático Jonas Oliveira de Albuquerque. Homem adorador da morte.
Obcecado
em servir a dama que ceifa vidas.
Chegou
a assassinar animais.
Jonas
era homem muito rico, filho único de um nobre português e de uma
pernambucana burguesa. Solteiro por escolha. Chegou a estudar em
seminários, porém,
jamais aceitou a vida religiosa.
O
fanatismo ocorreu após a perda da mãe. Pega em emboscada armada
pelos inimigos do pai. Naquela época homens guerreavam para tomar
posse das terras e guerras e emboscadas aconteciam. Foi desse jeito
que a mãe de Jonas morreu.
Ele
tinha oito anos e presenciou a tragédia. Os inimigos pouparam sua
vida. E por mais que traumatizasse, o menino adorou.
Claro
que tempo depois, o pai foi assassinato e Jonas ficou aos cuidados da
tia que morava pelos lados do cariri.
Quando
completou maioridade e se afastou do seminário, retornou a cidade e
com os dotes da herança começou a construir a seita. Seita em
homenagem a morte.
Não
que os habitantes aceitariam uma seita nesses parâmetros. Nenhuma
alma concordaria prestar orações, cânticos ou ritual que fosse.
Jonas
ludibriou. Ou seja, mentiu. Manipulou. Enganou os habitantes a
adorarem uma deusa sertaneja de nome Diana.
Cuja
visão o fanático teve nas andanças que realizava.
Não
havia Diana, nem deusa. Muitos menos na cidade, Bahia, Recife, Terras
do Ceará, nordeste inteiro. Deusa do sertão e da seca ninguém
conhecia.
Dissera
que surgiu montada num cavalo branco, de vestido, pele branca, cada
braço luvas de seda, chapéu branco e delicado, meio crochê, meio
algodão. Olhos avermelhados, penetrantes e decididos. Nos pés botas
e delicado cinto feminino de couro.
–
Eu
sou a morte.
Com
essas palavras (que não podemos dar muito credito) a aparição
ordenou que Jonas fizesse.
–
Vá,
Erga a casa. Construa o templo. Reúna o rebanho para adorar a mim.
Nos
olhos assustados, viu o cavalo branco apear e tomar o caminho,
deixando o pó levantar.
Abençoado,
o adorador revelou a visão e a missão.
E
como as pessoas eram humildes e de pequenas ideias, não demoraram e
principalmente o prefeito, aceitarem a proposta.
Nisso,
a ala católica se debandou, não compactuando e testemunhando um ato
de desrespeito a Deus.
O
que facilitou. Além de nomeado pastor da deusa Diana.
Não
houve relutância. O que contribuiu a insanidade de Jonas.
Seis
meses. Seis meses prestados para levantar o templo.
Para
inaugurar, os cidadãos sacrificaram animais de variadas espécies.
Bodes, cabras, cães, gatos, vacas, aves, burros e mulas tiveram as
gargantas e sangue esparramados no altar.
Aconteceu
na sexta-feira do dia 27 de março.
Reunido
à população, o pastor Jonas Oliveira de Albuquerque exigiu o
sangue dos moradores como ato de sacrifício, honra e glória a deusa
Diana.
Ludibriados
uma chacina começou.
Acreditaram
numa vida melhor, que neste plano sujo e doente, preso nas mãos do
inimigo. Sacrificados em honra à deusa.
Adultos,
crianças, ricos e pobres, manchou o solo da cidade. Nenhum escapou,
nem os recém-nascidos, as moças que paririam, os enfermos e os
aleijados.
Nas
palavras do líder, um mundo belo, sem macula, de amor e prosperidade
e de riqueza.
O
que descobriu tempos à frente, é que durou a noite inteira. Sequer
forçados ou submetidos. De bom agrado morreram em favor do plano
melhor.
Quando
a polícia, Estado, governador, autoridades militares chegaram
presenciaram o terror, encontraram Jonas de Oliveira Albuquerque
morto sobre uma jovem com os seios nus em cima do altar.
Por
alto, fuxico aqui e ali. Ouviram a história e a seita, até o
prefeito comentou. Sequer vieram verificar e averiguar.
Jamais
alma viva pisou no local. A cidade manchada, não há mais vestígios.
A
tragédia contada em cordéis, poemas, trovas, musicais, peças
teatrais e romances sertanejos.
Quem
se deu bem foi o escritor Eduardo Gomes Teixeira, com o romance A
Cidade e a Seita Recebendo
elogios, principalmente na Europa e Estados Unidos.
Encerro
aqui a relação que a morte carrega na humanidade.
Chegou
a hora do encontro. Hora de entrar novamente na casa que um dia
chamei de lar.
Puxo
a trava do portão e abro. Entro.
Não
ouço som. Silêncio.
A
porta aberta. Silêncio.
Entro
e reconheço o cheiro e recordações.
As
fotografias que enfeitavam deu lugar a quadros de pinturas e gravuras
malfeitas. O relógio cuco no cantinho que sempre foi dele. Era dos
avós da mamãe.
Certos
objetos deram espaço aos modernos aparelhos da moda.
Saio
da sala. Entro no corredor.
Há
três quartos. Meu, de papai e outro…
Acho
que fui atraído. Quando percebo, viro a maçaneta devagar para
abafar o barulho. O quarto da mulher que a gente amou…
Tudo
no lugar. Nada trocado ou modificado. A penteadeira que teimava em
dizer que veio da França não foi retirada. Os vidros de perfumes…
Alguns nem usados. Mexo nas gavetas, pertences nas mesmas posições.
Com
cuidado, esforço para abrir as portas do guarda-roupa. As roupas,
vestidos, blusas, camisas, pendurados nos cabides. Papai não moveu
nenhum dedo. Deixou do jeito que eu vi da última vez.
Nem
a cama.
Ela
ainda vive na casa…
Deito.
Preciso buscar recordações.
Tinha
o nome das musas de José de Alencar. As heroínas dos romances, que
nunca arrisquei de procurar.
Seu
nome era Lucíola.
Apareceu
num dia de chuva. Numa quinta-feira de tarde. Chegou com meu pai.
Fazia
onze meses que mamãe morreu. E desde a morte dela, papai nunca mais
demonstrou alegria.
A
chegada dela trouxe novos ares.
–
Jacó,
filho, venha aqui um pouquinho.
Estava
do lado dele, jeitinho tímido, belo de admirar.
–
Jacó.
Essa é Lucíola. Ela cuidará dos afazeres da casa.
Tinha
os olhos da cor do mel, o cabelo escuro, bem escuro e liso, usava
vestido simples, uma cor rosa desbotada, o rosto miúdo, fino, a
estatura média, a primeira vista pareceu uma índia fugida dos
romances que sempre desprezei. Não sei como, mas despertou em mim o
interesse que não encontrei em nenhuma mulher.
–
Prazer.
Jacó.
Estendeu
a mão e num aperto leve, conheci Lucíola.
Não
resmungou oi, olá, prazer em te conhecer. Nada. Apenas me deu a mão.
De
leve apertei. Encarei os olhos. Lucíola conquistou meu coração.
–
Vem.
Deixe as malas no quarto.
E
papai a levou ao quarto. Nesse dia nem botei os pés na rua.
Lucíola
virou assistente da casa. Fazendo serviços necessários. Como:
lavar, cozinhar e limpar.
Aos
poucos descobri a origem do nome e também de que parte viera.
–
Lá
dos lados de Minas Gerais. Na região da mata. Comentou.
Percebi
que meu pai mudara, demonstrava galanteios e elogios a nossa hospede.
O estranho era que não percebi que ele também nutria interesse.
Após
seis meses estávamos íntimos de Lucíola. Ela sentia o mesmo
sentimento.
Já
resolvia os problemas sem a nossa ajuda. Além de buscar o que
faltava e realizar as necessidades que precisava.
Eu
não esperava a hora, revelar o que sentia. Há tempos encenava o
momento e a hora veio.
Não
como desejava e como sucedeu. Tudo deu errado…
Papai
e Lucíola voltavam do passeio. Alias, passeios eram constantes entre
os dois.
Enfim,
retornaram do passeio e a fisionomia de Lucíola era de chuvas de
pratas de alegria.
Ela
ganhou no dia anterior um belo vestido e sapatos.
Eis
que veio a revelação não percebi do que ocorria debaixo do meu
nariz.
–
Jacó,
filho. Preste atenção.
Ele
tomou a mão dela e apertou num carinho de proteção.
–
Fique
de testemunha que aqui o amor floresceu. O amor entre mim e Lucíola.
Então
pasmado, papai continuou.
–
Esteja
em testemunha, de que nesse lar o casamento breve se realizará.
Tomei
de choque. Disfarçadamente desabei na poltrona. Boquiaberto esbocei
um silencioso parabéns.
Neste
dia, tomei de raiva de que a pessoa que amava, na verdade noivaria
com meu pai e casaria.
Tranquei-me
no quarto e permaneci.
Todo
homem é impuro, todo homem vive em cólera. Ele, na ira, não
enxerga nada. Somente o vermelho, ou a cegueira do ódio e da raiva.
E da inveja, por que não?
Pois
eram os três sentimentos que brotaram após saber que não teria
Lucíola e de que seria esposa do meu velho.
Não
desejei felicidades, não desejei alegrias para o casal. Em
pensamento, apenas uma ordem: roubar a moça.
Sim.
Deixei a mesquinhez dominar. Comecei meu duelo secreto.
Antes
desistisse ou esquecesse e partisse. Mas, não. Meu dever ferido
precisava de cura.
E
foi numa tarde.
Aguardei
que papai saísse e aproveitei para dizer o que estava preso dentro
de mim.
Fiz.
A reação de Lucíola não foi mais do que esperado. Surpresa com a
declaração. Negou. Explicou que amava meu pai, que estava em divida
por lhe dar lar, conforto e hospitalidade que não recebia há muito
tempo.
Com
essa divida, o mais que pagaria era teu amor.
–
Essa
afirmação seria casar?
–
Sim.
Está acertado. Nada mudará.
Furioso,
puxei e a beijei.
Lucíola
mordeu meu lábio, fazendo-me soltá-la. Bofeteou minha cara.
–
O
que pensa que está fazendo! – Gritou e se trancou no quarto.
Arrependido,
pedindo que me perdoasse, que esquecesse o que ocorreu. Em prantos
gritava para deixá-la em paz, que respeitasse tua privacidade.
Antes
tivesse ouvido a razão. Antes evitasse o que fiz.
Os
dias que passaram Lucíola não vinha nada bem. Ficou calada,
respondendo pouco e vivia pelos cantos em choro. Papai perguntava e
eu para despistar inventava qualquer assunto.
Nem
os passeios e os novos presentes puderam tirar o semblante que
carregava. E eu era o culpado…
Até
que num certo dia aconteceu o que não queríamos ter acontecido.
Havia
retornado da caminhada. Refleti o erro e revelaria que ocorreu.
Decidi que a solução mais correta era sair de casa.
Tive
sensação estranha. Chamei meu pai, mas nada de responder.
Envergonhado chamei Lucíola. E tive a mesma resposta.
Tinham
saído a passeio. Imaginei.
Entrando
no corredor, a porta do quarto entreaberta. Curioso, espiei. Deitada
de barriga pra cima e a cabeça deitada de lado. Entrei.
Foi
ao aproximar que vi a faca deitada do lado. E o pescoço num profundo
ferimento.
Desesperado,
fui acudi-la. Infelizmente não havia mais o que fazer. Morta.
E
da tragédia, trouxe a discussão e a separação.
A
magoa é grande. Hoje estou de volta, deitado na cama da mulher que
amei e que por minha culpa não está entre nós.
Levanto.
Seguro o choro que teima sair dos olhos.
Ouço
tosse. Papai.
Tosse
mais uma vez.
Saio
do quarto.
A
tosse vem do aposento dele.
Tosse
de novo.
–
Pai!
Falo
alto caminhando na direção do som.
–
Pai!
E
vejo-o deitado numa cara de susto.
–
Pai,
sou eu. – Falo entrando.
–
Jacó?
É você… É você de verdade? – Pergunta.
–
Sou
sim, Jacó.
Seu
rosto muda de expressão. Fecha feito um tempo ruim.
–
O
que faz aqui? – Pergunta ríspido.
–
Uma
moça apareceu e avisou da saúde do senhor e alertou-me para
visitá-lo. Vim o mais rápido que pude.
–
Moça?
Você disse moça? – Pergunta mudando sua expressão de tempo ruim.
–
Foi.
Veio do nada e desapareceu do nada.
–
Idiota.
Avisei-a para não te procurar. Maldita mulher intrometida!
Era
minha vez de ficar surpreso.
–
Mas,
pai. Ela disse que o senhor não está bem de saúde. E informou que
se não viesse, seria tarde demais.
–
Ah,
que bobagem! Essas pessoas são exageradas. É uma doença à toa.
Isso passa.
Volta
à expressão de mau humor. E me pergunta:
–
Veio
pra saber como estou ou também por outro motivo?
Encara-me
desafiando e se ajeita na cabeceira da cama.
–
Vim
pra te ver, só isso. – Respondo de cabeça baixa.
–
Reparou
no quarto dela? Não troquei e retirei nenhum objeto. Roupas,
perfumes, sapatos, a cama, tudo do mesmo jeitinho que deixou.
–
Eu…
Eu não vi. Não entrei.
–
Tem
certeza?
Pergunta.
Lança olhar duvidoso.
–
Sim,
tenho. – Respondo meio sem jeito.
–
Tudo
bem. Já que descobriu que não estou tão mal como lhe disseram,
volte para o lugar que viera. – Diz ríspido e grosseiro.
–
Pai?
–
Anda,
Jacó. Agradeço a preocupação, mas, por favor, vá embora!
Não
acredito que está me mandando embora.
–
Não
trate teu filho desse jeito!
–
Não
tenho filho. Perdi-o há muito tempo.
–
Não
fale assim, sou teu filho!
–
Não
tenho. – Fala de mau humor, de cara fechada. – Não quero uma
pessoa que tirou da minha vida à mulher que eu amava…
–
Pai?
–
Vá
embora, Jacó. Não pertence mais a esse lugar. Por favor, saia e
deixa-me sossegado.
–
Pai…
–
Vá
logo!
–
Só
vim lhe dizer que lamento tudo que aconteceu. Tudo mesmo. E falar que
nunca deixei de te amar. Te amo. Não se esqueça disso. Teu filho te
ama. Adeus. Adeus papai.
Saio
de coração partido, no silêncio da casa.
Nem
imagino a reação. Não quero supor e inventar coisa alguma.
Ganho
a rua. Ganho a calçada.
E
ela vem. Sim, ela vem. À moça que apareceu pra mim.
Com
vestido de seda, chapéu branco antigo do século XVIII, luvas que
encobre os braços, sapatos delicados e o rosto sereno.
Sorri
pra mim, numa expressão de alívio.
–
Ah,
veio visitar o pai.
–
Sim.
– Digo num tom de desanimo.
–
Hum,
que bom. Ainda bem que deu tempo pra se verem.
–
Certamente.
–
Sim.
–
É
melhor entrar, está sozinho. Depois do que teve lá dentro…
–
Não
estou por causa do seu pai, Jacó. Vim atrás de você.
–
De
mim? Pensei que era conhecida dele.
–
Ah,
é complicado de explicar. Nem consigo compreender.
Olho-a
desconfiado. Sem imaginar quem possa ser.
–
Moça,
quem é a senhorita, afinal?
–
Ah,
Jacó. Não prestou atenção em nada? Tua trajetória foi falar da
minha pessoa. Possuo várias formas, sentidos e aparências. Não
consegue saber quem eu sou?
–
Do
que est…
–
FUUU!
–.Todos
vão para um lugar; todos foram feitos do pó, e todos voltarão ao
pó.
(Rod.Arcadia)