Há
um cheiro estranho no ar que invade a narina alérgica e o espirro
escapa num gesto de desconforto. Um lenço de papel é estendido, o
que se vê, é a mão de uma mulher bonita por sinal. Com delicadeza,
pega e limpa o nariz dando arrepio e irritação pra quem está
próximo.
– Muito
Obrigado!
A
pessoa sorri agradecida, fisionomia séria, mãos cruzadas no colo da
perna. Aposta numa idade de trinta e seis anos, o vestido amarelo
combinando com a magreza e não recorda de tê-la visto no coletivo
para a zona leste no começo da tarde. Ao olhar, verá que não
apresentava nenhum aspecto de passageira. Reparando nas mulheres
descobrirá a razão da desconfiança.
No
ombro bolsa de couro amarronzada, a alça fina combinando com a parte
magrinha e branca da pele, cabelos claros com perfume diferente de
shampoo que não se achava em nenhuma moça. Ou que nunca teve chance
de prestar atenção na fragrância. O sabonete resolve na hora de
lavar, simples e prático, sem frescuras como os metrosexuais. Ah,
não! Fora com essa moda que a mídia cria e o pessoal trouxa cai
que nem patinho. Pra cima dele não!
E
os seios pequenos, pescoço fino, de aroma agradável era o contrário
do que se via, é mais do que benção, porém, uma sorte que não se
vê toda hora.
Com
o lenço assoa o nariz, emite som horrível e deselegante. Que
vergonha… Fica sem graça, ato desaconselhável num local de muita
gente e transporte lotado.
– Desculpa.
Diz
pra mulher, que abre sorriso demonstrando que está tudo bem.
Que
mulher bonita! Que nome uma beleza dessas teria? Ana, Mônica ou
Sofia? Nome de pobre, bem capaz. Ah, nem cara e nem maneira de pobre
se pintavam nela. Não entende o motivo de ela entrar num coletivo
pra ouvir besteiras e bobagens, identificar estranhos olhares, calor,
suor, canseira e barulho. Talvez o veículo esteja no conserto e
resolveu arriscar e conhecer a vida de assalariado que depende
rotineiramente da locomoção para chegar ao trabalho.
Seu
nome é Adriano, sentado do lado da mulher. Ele no banco do corredor,
uma outra moça em pé, bem mais jovem, segurando firmemente sua
mochila escolar, olhos atentos para o lado de fora reparando nas
paisagens monótonas da cidade grande e padronizada, de imóveis de
cores iguais, calçadas com a mesma espécie de decoração que
transmitia aspecto artificial, sem alma e vontade.
Adriano
tem vinte e sete anos, jovem por assim dizer e casado. Casou aos
dezoito num impulso de adolescente que não pensa no que faz. Age e
pronto, recusando conselhos de qualquer um mais velho, considerando
senhor de si e da própria vida. Se a noiva tivesse feito pressão e
encostado na parede, até poderia ser perdoado, mas nada disso
ocorreu, foi ele que apressado marcou data de casamento não
imaginando consequências.
Do
casamento vieram filhos, um casal. Ama-os, o melhor tesouro que o
homem possa receber, confirmando o prazer da vida de admirar a
alegria e a felicidade da criança e entender que o mundo não é tão
feio como os adultos pintam.
Ele
acordou cedo, na noite anterior avisou que chegaria tarde do
trabalho. Sem dar mais detalhes beijou a esposa e os filhos.
Três
dias antes discutiram, discussão como todo casal há de ter. O que
não é correto, esse constrangimento influencia e o que se imagina
na cabeça da criança nessas horas? Evitava o máximo, mas Sônia,
de pavio curto, nem esquentava e caia na briga exageradamente.
Adriano
está desempregado há seis meses vivendo da ajuda de amigos e
parentes e o restante é dos bicos que encontra na internet.
Trabalhava
numa excelente e famosa empresa de laticínio, cargo de gerente de
produção, salário razoável pra manter as exigências e as
vontades de Sônia. Não havia argumentos para reclamar, caminhava às
mil maravilhas, até que um ocorrido fez com que tudo deixasse de
existir.
A
vida que levava se desmoronou feito fila de cartas, não teria mais
chances de sustentar a família como desejava, como Sônia sonhou. E
o efeito trouxe complicações e pesadelos e as complicações são
brigas constantes.
A
mulher do seu lado chama atenção. Aos seis meses de coletivo
urbano, pegando de manhã e voltando quase no começo da tarde a
magra nunca havia aparecido. Se sente atraído, o que é errado, mas
tinha uma quedinha nas meninas do seu ex-emprego, quase rolou
aventura com uma delas, cinco anos mais jovem, porém surgiu um
carinha da mesma idade e decidiram namorar. Ficou um pouco chateado,
nutria enorme tesão na garota e nada mais. Que amor existiria se a
mente pensava em sexo? Com o passar dos dias considerou correta a
aparição do rapaz, o casinho viraria tremenda situação chata para
ambos.
E
carrega uma vontade danada de querer a magra. A menina em pé desce,
ele a segue com os olhos, vendo-a caminhar na direção oposta do
ônibus até desaparecer da sua visão. Um engravatado com pasta
preta toma seu lugar, estica o braço e abre a janelinha pra arejar.
Calor insuportável, arranca seriedade de qualquer um, menos de
Adriano.
Há
seis meses cismou que a Terra está prestes à extinção. Pronto,
cisma maior não havia, pensava na possibilidade dos erros dos homens
e das suas consequências.
Chegando
do trabalho contou para Sônia que sensata considerou fruto de
insanidade, informando que se fosse pra dizer asneiras era melhor ter
ficado calado. Insistiu, convicto de que restavam poucos meses e que
o mundo precisava estar acordado, mesmo não havendo salvação.
Neste
dia brigaram, não por causa do assunto do fim do mundo, porém, por
outra bobagem nada séria. A discussão marcou o recorde de exageros
que tiveram nos últimos anos de convivência.
No
décimo dia, crente da cisma se demitiu. A decisão pegou a empresa
de surpresa e ninguém soube como agir.
Mais
uma vez discutiu com Sônia, garantiu que não deixaria de colocar
comida para os filhos. Ela só não aceitou conviver sem as mordomias
que estava acostumada a ter.
A
vida prosseguia normalmente. Se perguntassem das mudanças
repentinas, vinha noticiar que o fim da humanidade não demoraria e
não havia quem acreditasse recebendo conselhos de procurar
psiquiatras, psicólogos, psicoterapeutas e manicômios ou que se
batizasse em qualquer denominação evangélica ou protestante.
Adriano era estranho numa sociedade estranha.
Não
consegue controlar seu desejo pela magrela, se pudesse a possuía na
frente dos passageiros que conversam rotinas e violências. Talvez
considerariam normal, continuariam com conversas banais do dia a dia
e há a desculpa do fim do mundo. E se há o fim, tudo é permitido.
Levava
consigo um velho canivete, herança do avô paterno. Guardado no
bolso da calça jeans, teve uma doida ideia, retirar e
disfarçadamente encostar no corpo da mulher. Com jeitinho e falando
no ouvido dela exigiria que ficasse tranquila e sairiam juntos, ela
na frente e ele atrás com o objeto nas costas, dando a entender que
eram namorados.
Conhece
uma ribanceira afastada há alguns metros, no bairro da zona leste,
quando quer estar sozinho visita o local, poucos arriscam perambular
por lá, lugar deserto e perigoso.
Sem
remorso levaria e colocaria o canivete no pescoço dela, pediria
silêncio e por trás a violentaria com suavidade, sentindo prazer, o
choro de medo, as lágrimas salgadas no rostinho branquinho. Imaginou
que a vítima começasse a aceitar e pedir dengosamente que ele
continuasse os movimentos e ambos explodissem gostosamente no término
do ato.
No
fim, na beirada da ribanceira, passaria a lâmina do canivete no
pescoço dela e jogaria o corpo, observaria alguns minutos e tomaria
o seu caminho. Seria o dia dos últimos tempos.
Olha
pra ela e sorri.
– Agradeço
novamente o lenço. Passo vergonha com as alergias.
– Ah,
não tem problema. Acontece.
O
sorriso simpático e educado é lindo, infelizmente ele desceria no
próximo ponto.
– E
desculpe qualquer coisa. – Diz ao levantar e puxar a cordinha.
Nessa hora o ônibus não estava tão lotado.
Ela
nada diz, olha-o remexer nos bolsos da calça do lado de fora na
calçada. O ônibus parte sem chorar um adeus.
Adriano
afasta-se das poucas residências que existiam no caminho da
ribanceira. O local escondido entre o matagal e o lixão clandestino.
Assustou-se com o cadáver de um cão sendo devorado por vermes e
mosquitos nojentos rodopiando além de entulhos, lixos domésticos e
detritos de animais.
O
caminho é um pouco afastado, verifica o relógio e nem é meio-dia.
Saiu cedo, não comeu nada pra forrar o estômago. Bebeu um copo de
guarapa antes de entrar no coletivo. Não voltará pra família.
Aliás, mentiu.
Dissera
que recebera uma proposta de trabalho, que não deveria ser recusada
e que renderia excelentes rendimentos. Sônia não deu bola, em seis
meses, Adriano dizia a mesma história, que o emprego era bom, que
receberia bem e no final não era nada daquilo que argumentava. Sabia
de cor, sempre trazendo uma miséria que mal dava pra comprar algumas
coisinhas para casa.
Sequer
foi trabalhar. Adriano permaneceu a manhã inteira no parque
municipal da cidade aguardando a hora do aviso de que a família foi
assassinada.
Não
queria que morressem nas mãos daqueles que descerão do firmamento.
Há uma semana procurou uma pessoa que pudesse realizar a tarefa,
alguém de sangue frio.
Dois
dias antes encontrou o individuo. Entregou uma cópia da chave da
porta e que deixaria o portão com fácil acesso para entrar e
executar a família dormindo. Sem dor e sem sofrimento.
Melhor
assim. Pensou.
No
parque, esperou a chamada no celular, preocupado.
– Tudo
feito. Como me pediu.
Ao
escutar, Adriano sentiu uma dor no peito, um pedaço que se arrancou
por dentro, mas o trabalho estava feito.
Na
ribanceira um lindo horizonte. E todo esse quadro maravilhoso seria
extinto daqui a pouco.
Parado
na beirada olha pra baixo. É uma queda e tanto até o chão. O céu
limpo e o ar silencioso. Vozes distantes. O último dia da
humanidade.
Retira
o canivete, com a mão coloca a ponta da lâmina na jugular. Toca a
ponta da pele pra descobrir que não teria moleza.
Sua
cabeça apontava pra cima e discretamente dois sóis ou duas estrelas
desenhavam feito alegoria surreal no céu.
Relembrou
dos nomes que escutara quando era menino na companhia da mãe e um
colega: Anunnaki, Sumérios, Marduque, Tiamat e Nibiru.
Na
mesma direção algo piscava, uma estática com falhas igual
televisão antiga, até que a imagem se torna nítida e uma
espaçonave encobre as dimensões do firmamento. Por alguns segundos
Adriano se surpreende e treme. O fenômeno desaparece.
Nos
incrédulos olhos a lágrima teima sair. O coração salta, o gole
seco da boca seca, pernas bambas e braços formigando. Lentamente
abaixa o braço e guarda o canivete. Dá meia volta e toma o caminho
de volta. Respira profundamente.
Ainda
faltavam horas para o fim do mundo.
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