segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A Carta






A Carta




No meio da calçada colocou a folha de papel no peito. Havia certas impressões nela. Triste? Emocionada? Talvez surpresa. O óculo ocultava o rosto e os olhos verdes. O vestido florido combinava com a magreza. Parada, como se os pés dissessem que ali fariam independência. Ou quem sabe, o papel tivesse culpa.

Ao redor pessoas aceleradas, ritmo acelerado. Uma senhora pediu informação, não soube explicar, não soube escutar, não ouviu. A senhora fizera um gesto desagradável e mesmo assim continuou distraída.

O papel significava alguma coisa que talvez soubéssemos. Ainda estava na parte da manhã, faltavam muitas horas para o almoço. Alguém gritou “Gostosa” num desses ônibus urbano apertados que todo cidadão necessita. Segura de si, não ouviu a pessoa gritar. Talvez tivesse morrido ali, prendendo um papel no peito. Não conheciam teu nome, endereço, idade, se trabalha, se é casada, solteira... Tinha cara de solteira, cara de virgem, aposto que nenhum homem apalpou os pequenos seios que marcavam o vestido. Porém, se estava morta, continuaria de pé? Não piscava sequer um olho, que dona misteriosa...

Dona não. Dona seria mulher mais velha e aparentava no chute uns vinte e seis anos? Vinte e nove? Bom, beirava quase trinta. Não carecia de beleza, havia uma boquinha chamativa num batom vermelho, os olhos, certamente tiravam atenção e homem nenhum sentiria tesão por olhos, quem sabe pelos pés.

O corpo não era chamativo. Bundinha magra, seios pequenos, cabelo no ombro, pele branca e pernas finas, sem coxas grossas. E se gritavam: “Gostosa”, era mais um misto de ironia sarcástica.

Morava na zona norte, casa verde de número primo, filha de mais quatro irmãos, dois homens e duas mulheres, a irmã noiva de um técnico aviador, os dois irmãos um quase noivando e outro de caso enrolado, perdera o pai bem cedo, na infância, não tiveram tempo de brincar, de conhecer as manhas um do outro, de cantarem as músicas e cantores preferidos, a mãe dissera que o pai adorava o Caetano Veloso, a Tropicália, a Gal Costa, o Pepeu Gomes, ela quando criança apreciava Toquinho, Elis Regina, um pouco de Nara Leão, às vezes a mãe colocava o vinil pra tocar a voz da Maísa. Com o tempo começou a gostar das bandas inglesas dos anos 80, Joy Division, The Smith, The Police, além de Sade, a banda.

Os vizinhos jamais viram com namorado e se tivesse de namoro, só a família e os parentes saberiam, havia mistério que todos fervilhavam em descobrir, tinham vergonha de perguntar, mas que tinha ar misterioso isso tinha.

Levantara cedo, antes de todos, apressada, ansiosa, mal bebeu café, horário do ônibus, se perdesse, só uma hora e meia. Foi a correr no ponto, conseguiu, entrou junto com mais três pessoas e discretamente se sentou no banco do fundo. Saltou do ônibus, assustada com a manhã agitada, era segunda- feira e ouvira tantas reclamações e casos de traições e sexos que teve que buscar respirar para não se asfixiar. Saltou, quase tropeçou no salto alto, detestava sandália de salto alto e decidira dar chance a sandália que a irmã presenteou no natal. Teve que fazer malabarismo, de cabeça erguida seguiu vitoriosa. Nem atraíra olhares masculinos e dos femininos encontrou interrogação.

Distraída, nem tomou trabalho de pensar.
Entrara na agência dos correios, pegou a senha, sentou na poltrona e aguardou a vez.

Ao ver o número da senha se dirigiu ao guichê nº5, retirou da bolsa o pedido que viera buscar e a mocinha educada pediu pra esperar. Veio carregando um envelope, não era grande, normal, contendo uma carta de amor, ou coisa, imaginou. A mocinha informara o preço, pagou com moedas, agradeceu e saiu às pressas pra encontrar uma praça e um banco pra sentar.

Não bastou dez minutos para a expressão mudar e num movimento robótico saísse do banco e começasse a andar desorientada e hipnotizada, segurando à carta. Veio parar no meio da calçada, depois não ouviu som algum, de passarinho, de trânsito, de construção, de música, de gente e dela própria.
– Moça?
Qual era o conteúdo na carta? Que assunto deixaria fora da realidade?
– Moça?
Um moço, desses que levantam bem cedo pra correr. Chamou uma, duas, três vezes. Ela despertou na terceira chamada.
– Moça?
Ao olhar estranhou. Quem é ele? Perguntou tua mente. Sentiu alívio certamente ajudou a voltar à realidade.

Rapidamente se ajeitou como uma menina comportada, exibindo sorriso tímido.
– Está bem? – Perguntou o moço encarando os verdes olhos atrás do óculo.
– Sim, estou. Obrigada. – Sorriu.
– Me pareceu que não estava bem.
– Não foi nada, estou bem, obrigada.
E reparou, a carta e o envelope e num gesto entregou ao corredor.
- Pegue. Por gentileza, jogue no lixo pra mim. E muito obrigada, por tudo. Adeus.
E saiu em passos rápidos pra chegar ao ponto e voltar pra casa. Faltava pouca hora para o almoço.

(Rod.Arcadia)


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