A
Menina Que Voou
Era
de muita chuva quando chegou.
Molhada,
feito pintinho abandonado.
Eu
tinha dez pra onze anos e não tinha irmão.
De
cara não gostei. Teria que dividir o quarto. Ordem de papai.
Naquele
tempo com dezoito anos. Moça feita.
Mamãe
foi fazendo amizade, animada e alegre, sorriso que escapava da cara.
A
moça tímida e acanhada, olhão, respondia seca. Uma forma de
proteção que compreendi mais tarde.
Com
o tempo acostumou e ficou íntima da gente. De minha parte tomei
apreço e tornamos amigos.
Num
certo dia, fim de semana, fingindo dormi, vi entrando com um rapaz.
Ficou em cima dela, parecia bom, ela não reclamava.
Foi
assim por dias, escondido e eu nem contei e não foi de medo.
O
moço que entrava era filho de um importante homem da cidade. Homem
de muita influencia viajante das Europa.
Se
deu um mês e sem que ninguém soubesse o malandro se escafedeu. Pra
onde ou qual lugar ninguém soube. Sumiu, evaporou e a menina ficou
sem chão.
O
desespero aumentou quando descobriu que estava gravida.
Mas
como! Como aconteceu? Perguntaram a vizinhança.
Meus
pais não entendiam, não saia, quando saia era pra me levar na
escola e retornava. De que raio viera à gravidez?
Pra
terminar com o mistério fui logo dizendo: - Foi o filho do fulano.
Quem?
Ele? O moço? O filho do tal? Ai, caramba!
Meus
pais foram pra casa do pai do fujão, tirar satisfações, de nada
adiantou, o homem bravo não quis saber de conversa e que a sacanagem
do filho não era problema dele.
A
menina chorou. O que fazer com um problemão? Levada no medico, não
tinha como evitar pra desespero da criatura. Meus pais a confortaram,
dando a confiança de que cuidariam, que ficasse calma e que tudo se
resolveria.
Os
dias foram terríveis e tristes.
Ela
ficava na cama chorando o dia inteiro, mal comia, tomava banho, não
conversava, ficava calada observando. A pobrezinha sofria e a gente
não sabia curar a depressão.
E
num certo dia ao voltarmos da casa do meu tio a encontramos caída.
Não havia vida. Morta. Totalmente morta.
O
medico veio constatou que era difícil diagnosticar a causa da morte.
Deixamos
na cama, coberta com lençol. Eu sentia que algo me atraia a ficar de
vigília, de ficar próximo.
– O
que faz aí, menino? Vamos.
Mamãe
me puxava pra fora, qualquer descuido eu voltava.
Fiquei
triste quando a colocaram naquele caixão de necrotério. Nossa,
parecia um nada, uma coisa qualquer depositada num objeto feio.
– Ela
volta, né mãe?
– Não
filho, não volta.
– Ah,
volta sim.
– Foi
para o céu e lá ninguém volta.
Houve
o enterro, jogaram terra, peguei um pulhado na mão, flores foram
lançadas. E nossas vidas continuaram.
Depois
da missa de sétimo dia, que meus pais fizeram questão de realizar,
a convivência em casa ficou vazia e triste. Não conversavam tanto e
eu criança não tinha papo de adulto. Restava observá-los.
Até
que certo dia mamãe ficou brava com papai. Dizia cada palavra feia e
chorava. Ele tentou acalmá-la, implorou perdão, que era um monstro,
que o que tinha feito era monstruoso e que foi fraco.
Meu
pai saiu de casa, quis perguntar, continuei calado, a olhar mamãe.
Dei-me meu abraço, ela aceitou, sem dizer nada.
Alguns
meses papai voltou. E passou um ano meu irmão nasceu.
Ha
muito tempo após eu entendi a discussão, o caso da menina, a
gravidez e o filho do fulano.
Hoje
evito falar, até esquecer. Sei que tudo mudou, o segredo que
guardamos e que não traz boas recordações, principalmente aos meus
pais.
E
eu não esquecerei da menina, a menina que vi voar.
– Mãe,
ela voou!
– Quem,
voou, menino?
– Ela
mãe, ela ali.
– Filho,
você sabe que isso não pode.
– Eu
vi voando, subindo pra cima, para o céu.
– Tá
bom. E o que mais, garotão?
– Sorriu.
Sorriu e voou e desapareceu lá alto...
– Que
lindo. Bom, chega, vai tomar banho, agora, já!
(Rod.
Arcadia)
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