A
Carta
No
meio da calçada colocou a folha de papel no peito. Havia certas
impressões nela. Triste? Emocionada? Talvez surpresa. O óculo
ocultava o rosto e os olhos verdes. O vestido florido combinava com a
magreza. Parada, como se os pés dissessem que ali fariam
independência. Ou quem sabe, o papel tivesse culpa.
Ao
redor pessoas aceleradas, ritmo acelerado. Uma senhora pediu
informação, não soube explicar, não soube escutar, não ouviu. A
senhora fizera um gesto desagradável e mesmo assim continuou
distraída.
O
papel significava alguma coisa que talvez soubéssemos. Ainda estava
na parte da manhã, faltavam muitas horas para o almoço. Alguém
gritou “Gostosa” num desses ônibus urbano apertados que todo
cidadão necessita. Segura de si, não ouviu a pessoa gritar. Talvez
tivesse morrido ali, prendendo um papel no peito. Não conheciam teu
nome, endereço, idade, se trabalha, se é casada, solteira... Tinha
cara de solteira, cara de virgem, aposto que nenhum homem apalpou os
pequenos seios que marcavam o vestido. Porém, se estava morta,
continuaria de pé? Não piscava sequer um olho, que dona
misteriosa...
Dona
não. Dona seria mulher mais velha e aparentava no chute uns vinte e
seis anos? Vinte e nove? Bom, beirava quase trinta. Não carecia de
beleza, havia uma boquinha chamativa num batom vermelho, os olhos,
certamente tiravam atenção e homem nenhum sentiria tesão por
olhos, quem sabe pelos pés.
O
corpo não era chamativo. Bundinha magra, seios pequenos, cabelo no
ombro, pele branca e pernas finas, sem coxas grossas. E se gritavam:
“Gostosa”, era mais um misto de ironia sarcástica.
Morava
na zona norte, casa verde de número primo, filha de mais quatro
irmãos, dois homens e duas mulheres, a irmã noiva de um técnico
aviador, os dois irmãos um quase noivando e outro de caso enrolado,
perdera o pai bem cedo, na infância, não tiveram tempo de brincar,
de conhecer as manhas um do outro, de cantarem as músicas e cantores
preferidos, a mãe dissera que o pai adorava o Caetano Veloso, a
Tropicália, a Gal Costa, o Pepeu Gomes, ela quando criança
apreciava Toquinho, Elis Regina, um pouco de Nara Leão, às vezes a
mãe colocava o vinil pra tocar a voz da Maísa. Com o tempo começou
a gostar das bandas inglesas dos anos 80, Joy Division, The Smith,
The Police, além de Sade, a banda.
Os
vizinhos jamais viram com namorado e se tivesse de namoro, só a
família e os parentes saberiam, havia mistério que todos
fervilhavam em descobrir, tinham vergonha de perguntar, mas que tinha
ar misterioso isso tinha.
Levantara
cedo, antes de todos, apressada, ansiosa, mal bebeu café, horário
do ônibus, se perdesse, só uma hora e meia. Foi a correr no ponto,
conseguiu, entrou junto com mais três pessoas e discretamente se
sentou no banco do fundo. Saltou do ônibus, assustada com a manhã
agitada, era segunda- feira e ouvira tantas reclamações e casos de
traições e sexos que teve que buscar respirar para não se
asfixiar. Saltou, quase tropeçou no salto alto, detestava sandália
de salto alto e decidira dar chance a sandália que a irmã
presenteou no natal. Teve que fazer malabarismo, de cabeça erguida
seguiu vitoriosa. Nem atraíra olhares masculinos e dos femininos
encontrou interrogação.
Distraída,
nem tomou trabalho de pensar.
Entrara
na agência dos correios, pegou a senha, sentou na poltrona e
aguardou a vez.
Ao
ver o número da senha se dirigiu ao guichê nº5, retirou da bolsa o
pedido que viera buscar e a mocinha educada pediu pra esperar. Veio
carregando um envelope, não era grande, normal, contendo uma carta
de amor, ou coisa, imaginou. A mocinha informara o preço, pagou com
moedas, agradeceu e saiu às pressas pra encontrar uma praça e um
banco pra sentar.
Não
bastou dez minutos para a expressão mudar e num movimento robótico
saísse do banco e começasse a andar desorientada e hipnotizada,
segurando à carta. Veio parar no meio da calçada, depois não ouviu
som algum, de passarinho, de trânsito, de construção, de música,
de gente e dela própria.
– Moça?
Qual
era o conteúdo na carta? Que assunto deixaria fora da realidade?
– Moça?
Um
moço, desses que levantam bem cedo pra correr. Chamou uma, duas,
três vezes. Ela despertou na terceira chamada.
– Moça?
Ao
olhar estranhou. Quem é ele? Perguntou tua mente. Sentiu alívio
certamente ajudou a voltar à realidade.
Rapidamente
se ajeitou como uma menina comportada, exibindo sorriso tímido.
– Está
bem? – Perguntou o moço encarando os verdes olhos atrás do óculo.
– Sim,
estou. Obrigada. – Sorriu.
– Me
pareceu que não estava bem.
– Não
foi nada, estou bem, obrigada.
E
reparou, a carta e o envelope e num gesto entregou ao corredor.
-
Pegue. Por gentileza, jogue no lixo pra mim. E muito obrigada, por
tudo. Adeus.
E
saiu em passos rápidos pra chegar ao ponto e voltar pra casa.
Faltava pouca hora para o almoço.
(Rod.Arcadia)