terça-feira, 20 de agosto de 2013

O Batom






A boca não era linda nem os lábios grossos chamavam a atenção, o dia inteiro a pintá-lo. Primeiro de abóbora, depois mudava para rosa choque e seguia para alaranjado destacado e por último aquele batom de dama da noite, talvez a cor desse tipo de batom seja mesmo a vermelha, sempre o lambuzava nos lábios, você reparava nos contornos e desenhos da boca, tudo, tudo vermelho.
Quando ia ao baile, botava vestido que todo mundo sabia de cor, os sapatos que ganhou de um senhor, que sequer pegou na mão dela e o comentado batom de dama da noite. Não perdia nenhum sábado, descia o morro pra pegar ônibus até ao centro e chegar ao salão de baile. Era forró, bolero, tango, samba rock, música moderna não havia e se uma mãozinha boba colava nas partes mais íntimas, rodava a baiana e partia pra cima. Quando não existia nenhum abuso, era arrasta pé até as cinco da manhã.
No domingo descansava. Às vezes no baita sol de rachar, enchia piscina de plástico, colocava o biquíni e pintava de marrom os lábios, bronzeava toda, exibia ray-ban comprado no camelô e dizia que era seu dia de madame. Nos dias de piscina o ritual era um sambinha, Fundo de Quintal, Originais do Samba, Demônios da Garoa e arriscava alguns passinhos.
Na segunda ia para o batente. O batom discreto rosa bem fraco, trabalha de doméstica pra uma viúva chique, num casarão com piscina próximo ao centro. Por descuido trocava a cor do batom o que levava reclamação da patroa e ia as pressas trocar ou deixava os lábios sem cor.
Era desse jeito a rotina, pra cima e pra baixo pintando a boca, que não era bonita, o vermelho da dama da noite chamando atenção. Ei! Vê lá como pensa de mim, rapazinho. Não sou tua parenta!
E sai a desfilar de boca colorida, feliz como é e cantando o bom da vida.



(Rod.Arcadia)

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A Carta






A Carta




No meio da calçada colocou a folha de papel no peito. Havia certas impressões nela. Triste? Emocionada? Talvez surpresa. O óculo ocultava o rosto e os olhos verdes. O vestido florido combinava com a magreza. Parada, como se os pés dissessem que ali fariam independência. Ou quem sabe, o papel tivesse culpa.

Ao redor pessoas aceleradas, ritmo acelerado. Uma senhora pediu informação, não soube explicar, não soube escutar, não ouviu. A senhora fizera um gesto desagradável e mesmo assim continuou distraída.

O papel significava alguma coisa que talvez soubéssemos. Ainda estava na parte da manhã, faltavam muitas horas para o almoço. Alguém gritou “Gostosa” num desses ônibus urbano apertados que todo cidadão necessita. Segura de si, não ouviu a pessoa gritar. Talvez tivesse morrido ali, prendendo um papel no peito. Não conheciam teu nome, endereço, idade, se trabalha, se é casada, solteira... Tinha cara de solteira, cara de virgem, aposto que nenhum homem apalpou os pequenos seios que marcavam o vestido. Porém, se estava morta, continuaria de pé? Não piscava sequer um olho, que dona misteriosa...

Dona não. Dona seria mulher mais velha e aparentava no chute uns vinte e seis anos? Vinte e nove? Bom, beirava quase trinta. Não carecia de beleza, havia uma boquinha chamativa num batom vermelho, os olhos, certamente tiravam atenção e homem nenhum sentiria tesão por olhos, quem sabe pelos pés.

O corpo não era chamativo. Bundinha magra, seios pequenos, cabelo no ombro, pele branca e pernas finas, sem coxas grossas. E se gritavam: “Gostosa”, era mais um misto de ironia sarcástica.

Morava na zona norte, casa verde de número primo, filha de mais quatro irmãos, dois homens e duas mulheres, a irmã noiva de um técnico aviador, os dois irmãos um quase noivando e outro de caso enrolado, perdera o pai bem cedo, na infância, não tiveram tempo de brincar, de conhecer as manhas um do outro, de cantarem as músicas e cantores preferidos, a mãe dissera que o pai adorava o Caetano Veloso, a Tropicália, a Gal Costa, o Pepeu Gomes, ela quando criança apreciava Toquinho, Elis Regina, um pouco de Nara Leão, às vezes a mãe colocava o vinil pra tocar a voz da Maísa. Com o tempo começou a gostar das bandas inglesas dos anos 80, Joy Division, The Smith, The Police, além de Sade, a banda.

Os vizinhos jamais viram com namorado e se tivesse de namoro, só a família e os parentes saberiam, havia mistério que todos fervilhavam em descobrir, tinham vergonha de perguntar, mas que tinha ar misterioso isso tinha.

Levantara cedo, antes de todos, apressada, ansiosa, mal bebeu café, horário do ônibus, se perdesse, só uma hora e meia. Foi a correr no ponto, conseguiu, entrou junto com mais três pessoas e discretamente se sentou no banco do fundo. Saltou do ônibus, assustada com a manhã agitada, era segunda- feira e ouvira tantas reclamações e casos de traições e sexos que teve que buscar respirar para não se asfixiar. Saltou, quase tropeçou no salto alto, detestava sandália de salto alto e decidira dar chance a sandália que a irmã presenteou no natal. Teve que fazer malabarismo, de cabeça erguida seguiu vitoriosa. Nem atraíra olhares masculinos e dos femininos encontrou interrogação.

Distraída, nem tomou trabalho de pensar.
Entrara na agência dos correios, pegou a senha, sentou na poltrona e aguardou a vez.

Ao ver o número da senha se dirigiu ao guichê nº5, retirou da bolsa o pedido que viera buscar e a mocinha educada pediu pra esperar. Veio carregando um envelope, não era grande, normal, contendo uma carta de amor, ou coisa, imaginou. A mocinha informara o preço, pagou com moedas, agradeceu e saiu às pressas pra encontrar uma praça e um banco pra sentar.

Não bastou dez minutos para a expressão mudar e num movimento robótico saísse do banco e começasse a andar desorientada e hipnotizada, segurando à carta. Veio parar no meio da calçada, depois não ouviu som algum, de passarinho, de trânsito, de construção, de música, de gente e dela própria.
– Moça?
Qual era o conteúdo na carta? Que assunto deixaria fora da realidade?
– Moça?
Um moço, desses que levantam bem cedo pra correr. Chamou uma, duas, três vezes. Ela despertou na terceira chamada.
– Moça?
Ao olhar estranhou. Quem é ele? Perguntou tua mente. Sentiu alívio certamente ajudou a voltar à realidade.

Rapidamente se ajeitou como uma menina comportada, exibindo sorriso tímido.
– Está bem? – Perguntou o moço encarando os verdes olhos atrás do óculo.
– Sim, estou. Obrigada. – Sorriu.
– Me pareceu que não estava bem.
– Não foi nada, estou bem, obrigada.
E reparou, a carta e o envelope e num gesto entregou ao corredor.
- Pegue. Por gentileza, jogue no lixo pra mim. E muito obrigada, por tudo. Adeus.
E saiu em passos rápidos pra chegar ao ponto e voltar pra casa. Faltava pouca hora para o almoço.

(Rod.Arcadia)


A Menina Que Voou




A Menina Que Voou




Era de muita chuva quando chegou.

Molhada, feito pintinho abandonado.

Eu tinha dez pra onze anos e não tinha irmão.

De cara não gostei. Teria que dividir o quarto. Ordem de papai.
Naquele tempo com dezoito anos. Moça feita.

Mamãe foi fazendo amizade, animada e alegre, sorriso que escapava da cara.

A moça tímida e acanhada, olhão, respondia seca. Uma forma de proteção que compreendi mais tarde.

Com o tempo acostumou e ficou íntima da gente. De minha parte tomei apreço e tornamos amigos.

Num certo dia, fim de semana, fingindo dormi, vi entrando com um rapaz. Ficou em cima dela, parecia bom, ela não reclamava.

Foi assim por dias, escondido e eu nem contei e não foi de medo.

O moço que entrava era filho de um importante homem da cidade. Homem de muita influencia viajante das Europa.

Se deu um mês e sem que ninguém soubesse o malandro se escafedeu. Pra onde ou qual lugar ninguém soube. Sumiu, evaporou e a menina ficou sem chão.
O desespero aumentou quando descobriu que estava gravida.

Mas como! Como aconteceu? Perguntaram a vizinhança.
Meus pais não entendiam, não saia, quando saia era pra me levar na escola e retornava. De que raio viera à gravidez?

Pra terminar com o mistério fui logo dizendo: - Foi o filho do fulano.
Quem? Ele? O moço? O filho do tal? Ai, caramba!

Meus pais foram pra casa do pai do fujão, tirar satisfações, de nada adiantou, o homem bravo não quis saber de conversa e que a sacanagem do filho não era problema dele.

A menina chorou. O que fazer com um problemão? Levada no medico, não tinha como evitar pra desespero da criatura. Meus pais a confortaram, dando a confiança de que cuidariam, que ficasse calma e que tudo se resolveria.
Os dias foram terríveis e tristes.

Ela ficava na cama chorando o dia inteiro, mal comia, tomava banho, não conversava, ficava calada observando. A pobrezinha sofria e a gente não sabia curar a depressão.

E num certo dia ao voltarmos da casa do meu tio a encontramos caída. Não havia vida. Morta. Totalmente morta.

O medico veio constatou que era difícil diagnosticar a causa da morte.
Deixamos na cama, coberta com lençol. Eu sentia que algo me atraia a ficar de vigília, de ficar próximo.
– O que faz aí, menino? Vamos.

Mamãe me puxava pra fora, qualquer descuido eu voltava.
Fiquei triste quando a colocaram naquele caixão de necrotério. Nossa, parecia um nada, uma coisa qualquer depositada num objeto feio.
– Ela volta, né mãe?
– Não filho, não volta.
– Ah, volta sim.
– Foi para o céu e lá ninguém volta.

Houve o enterro, jogaram terra, peguei um pulhado na mão, flores foram lançadas. E nossas vidas continuaram.

Depois da missa de sétimo dia, que meus pais fizeram questão de realizar, a convivência em casa ficou vazia e triste. Não conversavam tanto e eu criança não tinha papo de adulto. Restava observá-los.

Até que certo dia mamãe ficou brava com papai. Dizia cada palavra feia e chorava. Ele tentou acalmá-la, implorou perdão, que era um monstro, que o que tinha feito era monstruoso e que foi fraco.

Meu pai saiu de casa, quis perguntar, continuei calado, a olhar mamãe. Dei-me meu abraço, ela aceitou, sem dizer nada.

Alguns meses papai voltou. E passou um ano meu irmão nasceu.
Ha muito tempo após eu entendi a discussão, o caso da menina, a gravidez e o filho do fulano.

Hoje evito falar, até esquecer. Sei que tudo mudou, o segredo que guardamos e que não traz boas recordações, principalmente aos meus pais.

E eu não esquecerei da menina, a menina que vi voar.
– Mãe, ela voou!
– Quem, voou, menino?
– Ela mãe, ela ali.
– Filho, você sabe que isso não pode.
– Eu vi voando, subindo pra cima, para o céu.
– Tá bom. E o que mais, garotão?
– Sorriu. Sorriu e voou e desapareceu lá alto...
– Que lindo. Bom, chega, vai tomar banho, agora, já!

(Rod. Arcadia)