domingo, 22 de setembro de 2013

E Assim Continua...

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Bate uma vontade de entregar a vida. Após sessenta e seis anos pensar na entrega é válido. Um motivo concreto é o tanto de passagens que ocorreu nos anos. Foram muitas, boas, dolorosas, tempestades e calmarias. O cabelo ralo com cheiro de talco sabe. O cabelo não nega, nunca negou. Nem o resto do corpo, que com o convívio se aposentou. O corpo sabe, é hora de se entregar.

Não seria se entregar à morte? Morrer, falecer, bater as botas, ir pra um lugar melhor? Tanta faz! Pra alguém na idade encontrar um nome adequado não teria mais importância. Sim, com certeza, não havia importância. Até suas botas de sargento concordava num mero devaneio descontraído. Aposentadas também estão às botas. Lustradas, limpas e cheirosas. Não há chulé, ah não! Sabe cuidar delas tão bem, mais que os outros pertences que ficavam com ciúmes.

Levanta muito cedo. Tão cedo que a escuridão ainda domina a cidade. Sentado na cama, olha a parede, escuta o próprio respirar e assiste as danças das últimas mariposas na lâmpada. Logo no clarear do dia voltam pra suas casas para descansar. Acorda cedo, não quer encontrar o sono, não encontraria sono nenhum. Hora certa pra pensar na própria morte. Tão cedo assim?

Liga o aparelho de som, estação de rádio. “Num fio de cabelo no meu paletó.” * Troca. Revira pra cima e pra baixo o botão do aparelho, só dão notícias trágicas. “Moça jovem é encontrada no matagal. Indícios de violência sexual” “Assaltantes invadem casa de bairro de classe média e fazem vítima.” “Ciclone arrasa a região norte dos Estados Unidos.” Desliga. Distrai fazendo café.

O dia clareia. Pensar em morrer tira o pouco de vontade de beber café. Bebe na marra, sem pão, sem bolo e sem nada. Gosta desse jeito, sem digerir nada cedo. Guarda para o almoço. Disseram que não era saudável esperar até o almoço pra começar a digerir. Não é homem de obedecer a conselhos bobos e baboseiras. Gosta de mandar e não de obedecer. Foi sargento, tem no sangue o lado mandão de comandar. Velho de guerra enferrujado.
Arruma a cama. Como é organizado faz tudo direitinho. Dobra o cobertor e enfia junto com o travesseiro no guarda-roupa. Não há hora mais correta pra pensar em deixar a vida. Pega a toalha, entra debaixo do chuveiro, pensa, pensa e pensa. Não tinha preparado o plano da própria morte. Não necessita de planos. Pra ele, ex-sargento, sessenta e seis anos, descarta planos no momento. E como seria e como deveria ser?

Lembra-se do veneno de rato. Pois dias desses por abuso uma dessas criaturinhas invadiu seu quartinho. Era rato enorme, de assustar qualquer cidadão. Sem amedrontar do pequeno e nojento bicho trouxe do mercado o veneno. Espalhou pra todo canto, debaixo das velhacarias, buracos e frestas. Procurou o bendito, não estava em nenhum lugar. Pra onde teria ido? O rato roubou? Depois que colocara não sentiu mais a presença do roedor, que safado levou o veneno junto. Foi ai que se lembra da vizinha de porta, a dona Nice.
– Ah, poderia me emprestar pra botar lá em casa? Estou ouvindo barulhos estranhos de noite.
– Posso sim, dona Nice.
E emprestou pra vizinha e por lá ficou. Não lembrava, pois a preocupação com o rato havia terminado. Esqueceu e precisava do objeto, necessário pra realizar a vontade de...

Busca desculpa pra chegar à vizinha e pedir de volta. Mas é dele, não necessita de desculpa pra obter o próprio objeto.

A vizinha dona Nice esquecida pela família. Contava que teve o único filho levado, preso e desaparecido pela ditadura. Nunca mais o encontrou. Sozinha, não conseguiu apoio, veio parar na vila, no aluguel do quartinho, muito antes do ex-sargento, prevê qualquer coisa de errado, farejadora de problemas alheios. Prestativa, nunca recusou ajuda, pronta pra ajudar qualquer pessoa, conhecida ou desconhecida.

Não é difícil pedir de volta. Teria que aguardar até ela acordar e abrir a porta. Saia pra padaria buscar pão e leite para o café e assim falaria:

– Bom dia, dona Nice. Poderia por favor, devolver-me o veneno de rato que emprestei semanas atrás pra senhora? Preciso urgentemente.
– O bicho entrou de novo no quarto?
– Não, não. Não é pra isso que eu quero.
– Hum, se não há mais nada pra que precisa?
– Bom, dona Nice, o que emprestei é meu, então tenho o direito de pegá-lo e quero porque decidi entregar minha vida.
– O quê! Entregar a vida?
– Morrer, ingerir o veneno e morrer, senhora.
– Cruzes! Que brincadeira mais besta! Depois de velho virou piadista? Não fale em morrer, faz lembrar meu filho que a ditadura assassinou.

A conversa cairia no assunto do filho. Se aparecia um caso de morte na conversa lá vinha com o papo. Cheirava a provocação, sabe que o vizinho foi sargento na época da ditadura. Sempre pronta pra disparar indireta e provocação.

Ah, não tem como evitar a conversa e não tem como arrumar a desculpa da morte. Deixa pra lá.

Algum tempo a senhora abre a porta. Ele rapidamente sai num gesto de motivo.

– Ah, olá, senhor. Bom dia!
– Bom dia, dona Nice. Indo na padaria?
– Ah, não. Levantei pra visitar uma senhorinha doente que mora ao redor da praça.
– Coitadinha... O que ela tem?
– Diabete. E a família pede qualquer ajuda, não tem tempo pra ficar com a senhorinha o dia inteiro.
– É complicado...
– É sim. Ah, desculpa, tive que emprestar o seu veneno pra dona Carminha. Encontrou uma baita ratazana dentro de casa. Cruzes, que horror, arrepia.
– Não tem problema, dona Nice. Não escutei mais o barulho à noite.
– Que bom. Eu também não. Tenho que ir, adeus.
– Adeus, senhora.

Vê a mulher abrir o portãozinho e ganhar à calçada. Entra pra dentro e senta na cama. O objeto que usaria para morrer está longe. Bem, nem muito longe. Seis casas antes da dele. O ruim é que não tem amizade e papo com a pessoa. O máximo que tem é uma prosa curta e rápida. O que quer encontra com ela, é só caminhar até lá, bater palmas e pedir o veneno. Simples, sem nenhuma dificuldade.


Troca de camisa, uma branca que comprou um mês atrás. Sai. De encontro outra vizinha chegando. Essa mais nova, negra, trabalha no período noturno. Hoje veio tarde do serviço, ele não liga, tem seus problemas. Cumprimenta e vai pra rua.

Anda logo, perde tempo. Até porque morreria e deseja o mais rápido que puder, com sessenta e seis anos havia esperado muita coisa na vida, agora pra morte, quer um ato rápido e sem dor.

Dona Carminha estranha parado no portão. O dia mal tinha começado e é obrigada a atendê-lo.
– Pois não?
– Bom dia, dona Carminha. A dona Nice informou que a senhora pegou emprestado um veneno de rato.
– Foi sim, dias atrás. É do senhor, não é?
– Sim. Vim até aqui pra que me devolva, necessito urgentemente.
– Ah, não está mais comigo... Desculpa. Minha sobrinha que mora quatro quadras daqui levou. O sem vergonha do marido não ajuda em nada à pobrezinha, é um peste, um vagabundo!
– Ah...
– Posso ligar e pedir para que traga de volta.
– Sem problemas, dona Carminha. Não é preciso tomar o tempo da sua sobrinha. Obrigado, tenha um excelente dia.
– O senhor também. Obrigada.

Por dentro está furo da vida. Maldita hora que emprestou o negocio pra outra pessoa. Agora nem morrer tem o direito. Adiar a morte por culpa dos outros. Ah, mas no mercado com certeza teria sucesso.

Não saia sem a carteira e segue para o mercado que não é longe. Que tolice ter feito o que fez, era só retornar no mercado e pedir um novo veneno pra ratos. Ai terá sua morte em breve.
– Ah, por favor. Gostaria do veneno de rato outra vez.
– Lamento, senhor. Não sei que há no bairro. Parece que surgiu uma epidemia de roedores e nisso acabou meu estoque. Estou preocupado, o senhor é a décima pessoa a fazer pedido.
– Não há mais?
– Exato. Com a epidemia, veio gente procurar o produto. Estou perdido. Terei que fazer uma remessa maior.
– Uma pena...
– O senhor quer que reserve?
– Não, não. Até lá, eu já resolvi o meu problema. Obrigado. Até.
– De nada. Até.

Será que morrer é carregado de dificuldades? No caso dele parece que sim.
Volta frustrado para o quartinho, pensa no que o dono do mercado falou da epidemia de ratos. Dá nenhuma importância para o caso.
– Quero morrer, será que é difícil? Tudo precisa ser difícil na vida, até pra morrer?
Seu pensamento foge pra boca. O velho sargento decepcionado.

Ao voltar, deita na cama de barriga pra cima a olhar o teto. Do lado de fora ouve a algazarra das crianças, a martelada há distancia do pedreiro, o som de automóvel gritando música sertaneja, barulho, distante e próximo. Da rua a voz escandalosa da mulher, dá bronca em alguém, talvez pra alguma criança, a voz some aos poucos. Não o deixam pensar, pensar na sua vontade. Imagina levar um tiro de assalto, direto no peito, pra que não haja socorro. Imagina a cena, ele desafiando o marginal, provocando, desejando que tenha ação e com sorte, consegue. O marginal nervoso dispara, com seu revolver e o ex-sargento é atingido e que não há como salvá-lo, ambulâncias, resgate, nada. Cairia com o riso aberto, contente e morto.

Lança um sorriso bobo no ar, em câmera lenta o admira próprio caído baleado, sangrando, sem gemer, sem estar assustado e surpreso.
Suspira alto, espreguiça, há tantas maneiras, jeitos, artimanhas para morrer. Tinha hora, dias, semanas e meses para concretizar a sua vontade.
– Quero breve. Pra ontem, se for pedir muito.
Pensar no veneno que era dele o fez entristecer. Velho de guerra azarado.

No vacilo, cochila. Desperta no horário do almoço. Levanta bravo, pois perdeu um tempinho de pensar no plano de morte. Droga! Não devia vacilar, não devia ser vencido pelo cochilo. Segue para o banheiro pra tirar do rosto a cara de sono, retorna e liga o rádio. “Notícias trazem um grave problema nos quatro bairros da cidade. Uma epidemia de ratos deixa alarmada a população. Alguns supermercados alegam que os estoques de veneno e ratoeiras acabaram e não confirmam o prazo correto para reposição.” “O departamento básico de saúde avisa do perigo que o roedor traz nas pessoas. Alerta todos para a vigília contra essa peste maligna.”
Desliga o rádio. Tem fome. Não gosta de perder tempo. Precisa comer.

Dura meia hora de preparo para o almoço. Com o prato senta na cama. Come a contragosto, mas tem fome. Pensa que dará a última garfada no arroz e feijão e na mistura, um bife bem grande, depois não prevê o que virá.
Talvez esteja vivo amanhã e depois de amanhã. Quem sabe? Ninguém descobre o dia de amanhã, só o hoje. E o presente é cruel, ironicamente não o permite levar a sério o seu desejo. Se fosse tão fácil como pensa...

Passa à tarde dentro do quartinho. Não arquiteta nada, relaxa com outras coisas, pensamentos velhos, lembranças perdidas, a ditadura e a família. Família composta da esposa e dele. Não tiveram filhos, sobrinhos tinham aos montes. Filhos não. Casal azarado como dizia para os cinco irmãos homens, todos com filhos abençoados de saúde, chutando bolas de futebol, transformando em novos soldados... Não! Os sobrinhos abominam o militarismo, rebeldes, afeminados, estudantes anarquistas e esquerdistas, amantes de Marx, putinhas de Proudhon. Era a esposa e o ex-sargento. Muitos anos de convívio e matrimônio. Ótimos anos de felicidade.

– De amanhã não passa.
Diz pra si mesmo. Tentando buscar alguma esperança perdida no fundo do poço. Se não pode morrer de veneno de rato, há tantas formas de entregar a vida.
– De amanhã não passa.
Deita, dispara um tímido sorriso. De olhos fechados desenha várias imagens. Uma delas a esposa falecida, bonita na juventude e o próprio bonitão dentro da farda, jovem, esbanjando energia. Imagens que sempre o agradaram, que convivem há anos como companhia.

– De amanhã não passa. Encontrarei minha hora...

...


Três semanas passam e nada de concluir o objetivo.
A crise de epidemia espalhou pela cidade e casos de doenças causadas pela praga surgiram. Principalmente nas crianças. Nos supermercados há uma extensa disputa dos clientes na busca de venenos. O que vem gerando disputas violentas de agressões por falta do produto. Em alguns supermercados de grande porte é gerado senhas com horários marcados para que se consiga a compra da mercadoria.

O ex-sargento assistiu e ainda assiste o caos da epidemia. Os vizinhos reclamaram da quantidade de roedores. Por falta de outra solução, resolveram o problema a paulada. Na calçada, loteada de roedores mortos. São grandes, enormes e pequenos, expostos a luz do sol.

Adiaram a morte. Por mais que quisesse, adiaram a morte. A vida continuava, mesmo com a praga na cidade. Ouviu das conversas dos vizinhos que uma menina de doze anos chegara a óbito e que um senhor estava quase a beira disso também. Sentiu inveja, pelo menos sendo de doença o adoentado morreria.
Acabou deixando de lado o plano. Seguiu a vida, calado no seu cantinho sendo visitado pelos roedores. Não ligava, permitia que fizessem a festa no quartinho. Quando todos estavam apavorados e lutando, o ex-sargento mal se importava com a presença dos bichinhos. Eram três ou dois não sabia o certo a quantidade, mas estavam dentro, criando morada.
Sentia o cheiro de urina, forte, prejudicial, que o lerdeava, tonto, de mal-estar. Ficava horas deitado e dormindo, acordava desorientado com o cheiro cada vez insuportável. Chamara a atenção de dona Nice.

– O que há? Esse cheiro forte é de rato?
Eram três dias, nem notara a lerdeza do corpo e a fraqueza. Teve que abrir bem os olhos pra fixar o rosto da mulher e entender o que ela dizia.
– Está bem? Parece-me esquisito. – Ela pergunta.
– Tudo bem. Não é nada. – Responde.
– Verifique, senhor. Pode ser urina de rato. Essas coisinhas nojentas estão por toda parte.
– Eu farei, dona Nice. Por favor, me dê licença, preciso descansar.
Sem ouvir o adeus tranca a porta e com dificuldade cambaleia para a cama. Desaba, como um pesado corpo derrotado.

Passam horas, tem impressão de ouvir ruídos. Algo se move, barulhinhos fininhos. Sua cabeça agitada, os olhos doloridos e as lágrimas que brotam teimosas. Sem concentração não distingue o que está acontecendo.

Perdido, vira o rosto para o lado. Os olhos uma cortina de vertigem, no chão há vultos, pequeninos, que andam pra lá e pra cá. São ligeiros e agitados. São três ou talvez dois. A cabeça uma confusão. Está doente o velho soldado...

– A morte virá me abraçar?
Calado, olha o teto. Tão desorientado de si...
...


Não compreende, porém ouve vozes. Vozes femininas. Uma delas tem a quase certeza que reconhece. Não compreende a conversa é um cochicho inaudível, sussurros baixinhos e não entende o do por que de estar ali. Não sente o corpo, tenta se mexer, mas alguém impede, sente uma mão fria tocar o braço e esforça pra abrir os olhos. Inútil. Escuta ruídos, bips descontrolados, passos, passos apressados e vozes. Na correria, o braço picado, quis gritar, não sai nada, tenta abrir os olhos, é inútil. A noção do tempo perdida. Parece preso, preso numa prisão invisível, onde há gente e não compreendia quem era.

Dessas vozes umas delas conversa diretamente, toca o rosto, arruma o cabelo, troca às roupas todos os dias, mas quem seria? Uma conhecida?
Semanas atrás desejava morrer, por um motivo que não conseguiria explicar, quis se entregar a morte. Sua vontade foi perdida, ao menos entende que não está morto. Pra qual lugar viera, também não sabe.
As vozes ainda cochicham, estão calmas, sente a aproximação de alguém, sente o calor da pessoa, ela sussurra e se afasta. Não está morto, tem total certeza. Quer abrir os olhos, mas é inútil.


É um novo dia e ele sabe. Percebe o vulto passando, um ruído de algo correndo e um clarão a preencher. O vulto passa, ouve o andar, é mulher pelo som do sapato, som de salto a bater no chão, forte e barulhento. Depois, o rangido desafinado de uma porta sendo fechada.
Não demora muito e entra alguém. Outra figura feminina, aproxima do seu rosto, lhe toca, a mesma de todos os dias, conversa com ele, chama o seu nome e não lembra quem seria ela. É hora de abrir os olhos sargento.

A pessoa pega na mão, sussurra palavras que não distingue, aperta forte, como se quisesse puxá-lo, quisesse buscá-lo do buraco, é um aperto de segurança, de que estará seguro pra voltar, que não precisa se preocupar, firme e confiante.
O puxa de volta, segura de si, protetora, é hora de voltar ao mundo general.

Aperta bem forte, quer segurança, firmeza, ter certeza de que não soltará sua mão. E assim aos poucos abre os olhos...
No começo vulto embasado, desconhecido. Custa a clarear, a endireitar as imagens e a pessoa o observando. A claridade é dolorida, chocam os olhos, aos poucos se acostuma, distinguindo as coisas, os objetos e a pessoa ali que ainda não largou dele. O som começa a melhorar, melhora aos poucos. Escuta vozes, passos sendo dados e maquinários agindo ordenadamente.
– Graças que acordou, graças! – Diz a pessoa feliz com sua volta.
Pois agora sabe quem é a pessoa. É nada mais nada menos do que a própria vizinha dona Nice.
– Avisarei a enfermeira que o senhor acordou. – Ela avisa.

Se solta, corre apressada a procura da enfermeira. E não, o ex-sargento não está morto. Talvez o detalhe o deixa menos contente.

A vizinha volta tão logo quando foi.
– Prontinho, ela virá em breve. O senhor, como está se sentindo?
O ex-sargento ignora a pergunta da mulher lançando sua própria pergunta.
– Por gentileza, dona Nice... O que sucedeu comigo?
– Ah, a gente o encontrou desmaiado e febril na cama.
– A gente quem?
– Eu e a Mônica, a vizinha de quarto. Pedimos pra arrombar a porta, vimos dois ratos saindo de dentro.
– E me trouxeram aqui? É o hospital?
– Sim, é o hospital. Sete dias internado.
– E a senhora tomou seu tempo para ficar comigo?
– Ah, mas o senhor não tem parentes próximos, então fui responsável de ficar cuidando e visitando-o.
– Entendo.
Abre uma cara de desanimo que a mulher percebe.
– Está sentindo dor? Incomodo?
– Nada. Acostumando com a luz e voltando a escutar as coisas normalmente.
A cara com a mesma expressão. Agora pintada de derrota.
– Sabe dona Nice. Às vezes desejamos aquilo que não está preparado na hora que queremos. Certamente o que desejamos virá, mas não no momento que preparamos. É um grande mistério, não é verdade?
– Ah, com certeza. Desculpa, não entendi onde se encaixa o assunto.
– Não é nada. Apenas uma divagação por alto.
– Ah, entendi. Fique tranquilo, a enfermeira vem vindo.
– Tudo bem...
E vira o rosto para o lado tentando buscar respostas que não viria na sua mente.

(Rod.Arcadia)

Nota: * Trecho da música Fio de Cabelo de Chitãozinho & Xororó.











O Ultimo Copo







A música já não tocava mais. Os companheiros sentados, se encolhiam do frio e quando abria a porta, os olhos desenhavam pavor. No balcão a mulher de quarenta anos, magra, com o cigarro na boca brincava com o dedo dentro do copo de cerveja quente. Fazia círculos e quem sabe pensando em algo ou em alguém.
O balconista cansado conferia no celular algo interessante nas mensagens, não queria mais servir ninguém, queria que a hora chegasse pra correr nos braços do namorado de vinte e dois anos. Enviou a mensagem avisando que logo estaria em casa.
Os companheiros encolhidos discutiam Descartes que sem querer encontraram num desses lugares obscuros que desconhecemos. Se é que conheciam as teorias do famoso filósofo que pouco tinha de interesse. Ninguém entendia o que o outro falava.
Encostado no balcão com último resto de uísque ele tentava pensar. Entrou fazem três horas, não conversou, apenas pediu a bebida. Se sentia desconfortado quando a porta abria.
Não havia necessidades de estarem dentro, mas algo os fazia permanecer. Não era o frio, nem a música. O lugar possuía uma magia especial, uma fuga para o que há de pior do outro lado.
O balconista contente verificou o relógio pendurado. O expediente se encerrou. Entrou no quartinho para se trocar, que bom, ansioso, pensava no namorado, de abraçá-lo, de ser amado.
Ao vestir, era outro homem. Bem bonito, simpático, cabelo curto e escuro liso. Enviou outra mensagem avisando que o expediente terminou. Vestiu a jaqueta de couro e olhou para aquela gente. Tinha que avisar que o lugar estava fechando.
Os companheiros cada um contava uma farsante história. Sereias em alto-mar, ninfas apaixonantes, amantes profissionais. Cada causo, fantasia melhor que a outra. Os exageros nas bocas bêbadas e cuspidas, parecia um campeonato.
A cerveja dormia quente e nenhuma vontade de beber passou pela cabeça. Nem que estivessem afim de embora.
Tinha pena de colocar na boca o último vestígio da cerveja. Não possuía o sabor de antes. Sem graça, sem gosto. A mulher de quarenta anos de olhos perdidos, distinguia nada a frente. Baixou a cabeça, tentou saber como veio parar ali, quem deixou pra trás. A cabeça doía, era demais, forçado e doloroso. Levou a cerveja a boca para no meio do trajeto desistir. Voltou a fazer círculos na bebida.
O estranho ouvia a algazarra dos companheiros. Sabia porque estava, o motivo, a razão, a preocupação. Tarde, olhou o relógio. Tarde pra arrumar o que deixou, tinha medo, de não querer ver o que há do outro lado. Engoliu um pouco o uísque. Parecia um parasita sentado e acomodado.
O balconista com o ar confiante, fecharia o estabelecimento e estava se lixando para os visitantes. Não estragaria o momento por nada. Ninguém o reparou que após mudar não era mais balconista e sim um rapaz normal.
A nostalgia da mulher de quarenta anos lhe apertou o coração. O que ela faria numa hora dessas. Teria filhos, esposo? Morava nas ruas? O rosto seco e sem brilho contrastava com o ambiente. Decidiu que não era pra ele.
O estranho o olhou buscando respostas. Quem seria? Pensou afinal. A mente divagava lerdamente. Não recordava do rapaz com feições belas atrás do balcão. Quem seria? O balconista deu um sorrisinho pra disfarçar. Pensou nos braços aconchegantes do namorado.
Os companheiros mal sabiam o que falavam. Também estranharam o balconista. Continuaram cada um dizendo a própria bobagem.
Era chegado a hora. Sentiu um pouco de remorso. Porem, tinha pressa e se demorasse, perderia o ônibus.
– O bar fechou, senhora e senhores.
Foi como se o tempo parasse. Foi como se estivesse dito o que não deveria dizer. Não viu reação, chiado algum. O que pensam que estão fazendo? Pensou. Irritado por não ser escutado. Repetiu. Usando potência na voz.
– O bar fechou, senhora e senhores!
Sim. Isso. A voz ecoou no silencio do ambiente. Finalmente estaria livre para o namorado de vinte e dois anos.
O estranho não descobrindo quem seria o rapaz imaginou em partir. Partir pra onde? Se pedisse, pediria pra pousar no chão do bar. Exatamente, ficaria seguro e protegido. Além disso, ninguém o procuraria, nem a friagem do frio.
A mulher de quarenta anos não tinha noção do que estava acontecendo. Esboçou pronunciar, a palavra morria na boca. A cerveja perdeu o sentido. Queria ficar. Queria morar ali e não olhar lá fora nunca mais.
Os companheiros surpresos pelo aviso. Instantes a entender, cabeças em direção ao balconista, logo retornaram a falação sem sentido, cada um com uma conversa diferente da outra.
O balconista se irritou, pensou em gritar, falar palavrão, colocar essa gente pra fora. Daí notou que era um homem sozinho contra todos.
– Tenho mais nada pra fazer aqui. Dane-se, que se matem!
Tinha chave da porta, sairia e fecharia o estabelecimento, que a mão divina cuide dos pobres coitados.
Vestiu as luvas, retirou o celular, pensou... desistiu. Não precisava averiguar, de manhã encontraria o pessoal adormecidos, preparados para mais um dia e estaria preparado para servi-los.
Abriu a porta, o vento frio o apanhou. Houve protesto, não deu bola. Saiu, como estava fria a noite. Fechou a porta atrás de si. Passou a chave. Virou a placa de aberto pra fechado. Colocou as mãos no bolso da jaqueta a passos apressados andou ao ponto de ônibus mais próximo.




O que fazia os companheiros de não querer encarar o mundo lá fora? Esqueceram da vida, apagaram preocupações, sacrificaram segredos. Quem os conhecem reconhece seus pecados e culpas. Cada um tem a própria história que nem o mais bravo conseguiria desvendar.
Oito horas atrás. A mulher de quarenta anos discutiu com o amante.
Seu bairro ficava uma hora de distancia. Tinha medo de caminhar, alguém a avisou que era perigoso, pessoas perigosas andavam por ali. Apressou os passos, e não havia ninguém, pois quem encararia o frio que machucava a pele como agulha? Apressou para também escapar da friagem, porém o medo dominava.
Aliviou quando avistou o ponto de ônibus e nele aguardando seis homens. Seis homens rindo, falando alto. Bons companheiros, pensou. E se sentiu com sorte.
Finalmente no ponto olhou os homens e eles a encararam, mas a encararam com desejo. Sim, a desejaram, com o tempo gelado, morto e cinza. Mãos seguraram, outras rasgaram a roupa e gargalhando começaram um a um.
Deixaram-na nua no chão. Chorando e tremendo desorientada andou, o rosto avermelhado. Andou tanto que não reconhecia onde se encontrava, que havia movimentação, luzes, música, agitação. A mulher de quarenta anos entrou no local mais próximo.
O bar vazio, olhou para o balconista, um rapaz de feições bonitas. Pediu cerveja. A mão tremia, o balconista disfarçou o olhar. Ele abriu a garrafa, depositou a bebida no copo, ela bebeu. Um alívio percorreu o corpo. A música ainda tocava e era linda e flutuou ao compasso da melodia.
Um tempo depois os companheiros na maior algazarra entraram. Discutiam futebol, mulher e futilidades. Da mesa gritaram pedindo cerveja. Alegres e brincalhões fizeram chacota com o balconista que não gostou. Pediram pra música ser trocada e foram atendidos. Queriam farra, festa, falar bobagens e coisas serias, queriam ser excluídos do mundo.
Por fim, o estranho. E quem seria senão o amante da mulher de quarenta anos.
Sim. As peças preparadas e concluídas. Desfecho da maldade escancarada aos olhos de quem não enxergam.
Horas atrás discutiu com a amante. Quase a agrediu. Ela disse que ia embora e foi. Ficou no vazio, no arrependimento, amava-a. Não queria que terminasse o caso numa discussão estúpida. Correu pra trazê-la de volta. Daria carinho, faria amor, falaria para viverem juntos, morar. Correu, infelizmente sem sorte.
Os companheiros passaram por ele, mal o perceberam. Derrotado, viu a felicidade se apagar. Sentiu-se como o pior homem.
Dentro do bar, ninguém saberia quem seriam os personagens. Pois cada um tinha a própria prisão.




A chave virou duas vezes antes de abrir. De frente sentado de costas no sofá com a televisão ligada havia uma pessoa. Com toda discrição fechou a porta e trancou. Retirou a jaqueta e as luvas. Lançou-os na poltrona próxima. Se aproximou perto da pessoa que não proferiu reação.
– Olá, sentiu minha demora? Desculpe, hoje foi barra naquele lugar. Quanta gente ignorante, grossa e burra. Só pensava em você, sabia? É o meu protetor pra suportar, se eu não o tivesse, teria entregado os pontos há muito tempo. Vou tomar banho, tirar o peso do corpo e preparar o jantar. Já volto, meu docinho.
Beijou o namorado que nem se mexeu.
Entrou no chuveiro. A água quente era o remédio para todos os males imundos da sociedade. Não se sentiria culpado pela demora, decidiu limpar a sujeira impregnada na alma.
O namorado imóvel parecia morto. Talvez a alma se foi há muito tempo, ficando a carcaça e que o infeliz do companheiro não percebeu.
Trancado no banheiro deu vontade de cantar e cantar. E cantou pra uma plateia invisível dele próprio.


(Rod.Arcadia)












segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Antes da Jornada






Antes da Jornada
Sempre haverá Esperança...”.

1

Desperta com o chamado do relógio. Atrapalhado levanta tropeçando, meio zonzo, envolvido no último sonho. Entende que está no mundo real e possui hora marcada. Antes recolhe papeis do chão, revistas de conteúdo adulto e bota na mesinha. O relógio ainda chama, mas foi silenciando aos poucos. Pega a toalha e entra no banheiro.

Não enrola muito. Sai com a toalha enrolada no corpo molhado. Mexe e revira o armário até descobrir roupa adequada pra vestir. Do cabide puxa camisa de linho azul e calça preta, retira as meias que são pretas também. Veste rápido, ajeita aqui e acolá, coloca o sapato. No espelho verifica se há alguma coisa errada. Tudo certinho e arrumado.

Na cozinha esquenta o café, bebe morno numa colada só. A hora corre e detesta atrasos por isso se apressa. Pega a mochila de viagem de cor azul celestial. Abre, dá uma boa fiscalizada nos bolsos, nada faltando, checagem completa. Pronto, sem tempo a perder.
Coloca o relógio no pulso e a mochila nas costas. Sente o peso, pega uma edição das revistas de conteúdo adulto e a folhe-a na página marcada com caneta vermelha. Lê procurando descobrir algo de errado.

Senti-me realizada com aquele corpo me amando. Os lábios contra os meus, deixando-me excitada, de prazer, não sei o quanto me segurarei pra explodir de gozo e felicidade...”

Coloca a revista na mesinha. Pega o molho de chaves, olha eletricamente a casa e vai ao destino marcado.

Dá sinal para o táxi que anda lentamente na avenida.
Por favor, nesse endereço, tudo bem?
O taxista coloca os óculos para ler.
Prontinho, chefia. Chegaremos num instante.
Encosta-se à poltrona macia do veículo, fechando os olhos nem percebe a velocidade que adquira o táxi.


Semanas atrás recebeu do correio uma novidade um tanto desconfiada. No bilhete avisava que teria sido contemplado por um sorteio. Nunca participou de promoções, seja qual fosse à causa. Primeiramente pensou que tivessem se encanado e trocado os nomes dos vizinhos pelo dele. Os vizinhos entravam nas jogadas promocionais de prêmios como chocolates, marcas de bebidas, produtos de limpezas e por aí vai. Perguntou e deram a mesma resposta:
Não. Absolutamente não participei.
Ainda na dúvida e desconfiado ligou no endereço e escutou com maior clareza.
Absolutamente, senhor. Nós não trocamos o nome e o endereço, é um dos contemplados. Espero que esteja feliz com a ótima notícia.
Sem pensar deixou-se acostumar. Precisava, já que era morador solitário há anos. Entusiasmado e ansioso relia letra por letra e com outra mão segurava o objeto que recebeu.

É um dos sorteados. Compareça na data marcada no endereço indicado. Caso de dúvidas consulte-nos no horário comercial. Ass: A Diretoria.”



2



Três dias antes tomou a liberdade de visitar o irmão e mostrar a novidade. Achou melhor assim, o irmão mais velho é daquelas pessoas céticas chatas, com argumentos teóricos e pra não se chatear quis dar a notícia pessoalmente.
O irmão mais velho mora sozinho, separado há uma década, a ex-esposa e os dois filhos vivem no Paraná na casa de parentes do lado matriarcal. Só vê os filhos nos finais de ano e num curto período de hora.
Quando aparece, surge com planos pra caminhadas. Aceitando a contragosto o irmão embarga não tirando o perfil cético. A maioria dos passeios são caminhadas, onde debate assuntos, problemas, situações e amarguras. No fim, relaxam tomando chope.

Verdade isso? – Perguntou o irmão surpreso mostrando o bilhete.
Sim. Eu confirmei com a empresa e disseram que está tudo certo.
Oh, merda... Vem cá mano, um abraço de parabéns!
Envergonhado é envolvido no abraço apertado e o beijo no rosto.
Puxa! Estou muito feliz, de verdade.
Ah, que isso... Não é nada demais.
Nada demais? Tá doido? Quem não queria o teu lugar?
Imagino que muitos.
Pois é, ganhou oportunidade de ouro!
Ah, sem exageros, por favor.
Está bem, está bem. Sem exageros.
Assim é melhor.
E as coisas como ficam?
Do mesmo jeito. Não me planejei. A primeira coisa que fiz foi vir pra te contar.
Ah... Tem feito àquelas baboseiras?
Essas baboseiras estão ajudando, não posso sobreviver com o pequeno salário de aposentado.
Existem milhares de atividades pra tu fazer e caiu justo nessa? Não acredito sendo meu irmão e inteligente se perca nessas besteiras sem conteúdo.
É meu ganha-pão.
O irmão gargalhou e o deixou sem chão. Não sabia onde enfiar a cara aos poucos a gargalhada foi diminuindo.
Ah, desculpa, desculpa. Não deu pra segurar.
Ok. Estou acostumado com seus exageros.
Ah, que isso, minha chatice vem em primeiro lugar.
Verdade. – Soltou riso concordando.
Eu não aprovo o que anda fazendo. Mas, fazer o que se há monte de gente que acha bom.
Isso é certo. E o lado feminino vem aumentando muito nos últimos meses.
Oh, mais essa agora. Pobres fracos de cabeça!
Ah, esquenta não.
Que dia acontece a novidade?
Daqui á três dias. Dois dias pra resolver as coisas.
Será bom, desde que Elisa morreu vive trancado dentro de casa. Só vem pra cá raríssimas vezes e será ótimo ambiente novo pra vida.
Sim, tem razão.
Dê um abraço de novo, cara!
E assim terminou a visita com comemoração na choperia e voltou imaginando pensamentos positivos e sonhou momentos ótimos nesse dia.

Quando o taxista para está distraído divagando a psicologia humana. Fazia divagações, recordando os detalhes. Variados casos, de pessoas rotineiras trazendo o eterno confronto do “Eu” ou o “Porque”, cada um carrega o próprio vazio. São marcados pelas dúvidas, questões e apontamentos. Examinava o comportamento, a atitude, a ação. Longe de ser chato como o irmão, as opiniões guardava para si. Conversar com consigo é o ato de que nada vai bem. Absorvia a psicologia problemática dos cidadãos, só compreendia as chagas tarde demais. Pra tudo se resolvia, resolvia com distrações. A humanidade é acariciada com distrações. Reality, apresentações televisivas, câmeras, consumo exagerado, amores artificiais. Talvez tivesse parcela de culpa ou não. Possui cuidado e às vezes alguém foge do controle. Está lotado de loucos no mundo de distrações. É o ganha-pão. E sendo o fato engraçado, era mais uma ironia triste e desafinada.

Aqui, chefia. Sem atrasos. – Diz o taxista.
Do vidro fica espantado de ver a construção de cor dourada banhada na luz do sol.
Ah, pegue e fique com o troco. – Diz ao entregar o dinheiro ao taxista.
Obrigado pela gentileza.
Não há de que.
Mas antes de sair o taxista o para.
Posso lhe fazer uma pergunta? Se não for atrapalhar.
Ah, que isso, pergunte. Esteja à vontade.
Tem certeza que tudo é real? Existe o que estão dizendo?
Meu amigo, eu apenas sou um dos felizardos vim descobrir com os próprios olhos. Adeus e boa sorte.
Até, chefia.
Sente o vento na hora que o automóvel vai embora. Ajeita a mochila nas costas, é monumental a construção a sua frente, de enorme escadaria. Do alto fotografou com o olhar pássaros a enfeitar a sombra do astro-rei, desfilavam no ar sem nuvens, o céu enfeitado de poesia.
Pessoas subiam e desciam os degraus. Não enxerga nenhuma delas carregando mala ou mochila. Verifica o relógio, não está atrasado, tem tempo pra estudar o pessoal, contemplar o comportamento humano.




3


No dia após a visita ao irmão foi ter conversa com seu chefe. E se dirigiu ao prédio.
O felicitaram lembrando que era muito conhecido e comentado. Aparecia raramente, no termino de cada mês para descobrir os resultados do trabalho. Carrega dúvidas com a quantidade de sucesso que vem recebendo, não imaginava o boom tão grande.

Foi com alegria que o chefe o recebeu. Abraço caloroso e xícara de café que não foi recusado. Recebido o patrão quis saber o motivo da visita.
Ele puxou do bolso e estendeu ao patrão que pegou com ar desconfiado.
Leia. – Disse.
O homem de estatura mediana examinou com cuidado, revirou com a intenção de desvendar qualquer erro, esforçou e quando se deu por vencido o entregou de volta.
Serio? – Perguntou com vestígio de duvida.
Com certeza. Confirmaram-me.
Então...
É. Vim pra avisar. Não se preocupe, outra pessoa cuidará do trabalho.
Quem?
A dona Nina.
Ah, que senhora gente fina. Boa escolha, gosto demais dela.
Eu também. Faz bem direitinho, uma belezinha.
Verdade. E puxa! Contente e triste ao mesmo tempo. Dê uma olhada nisso, olhe o tanto de cartas que recebemos depois do último trabalho.
O homem passa um enorme volume de cartas que precisou ser colocada de volta na mesa.
É um tremendo sucesso, meu caro. Sucesso garantido.
Leu alguns comentários por cima, eram muitos e todos elogiando. Sentiu estranho, culpado em ver tanta gente feliz, precursor das distrações e que existiam coisas bem piores.
Acredito que com a chegada de dona Nina o sucesso expandirá cada vez mais.
Ah, tomara que sua previsão não falhe.
A senhorinha é ótima. Não tem erro.
Voltaram ao café e no fim o chefe chamou os funcionários para avisar ao que deram parabéns e muitas sortes. Saiu do prédio carregado de orgulho e grandeza, a despedida o emocionou, arrancou da rotina de reparar nos atos das pessoas. Considerou bom por ter esquecido.

Sua última parada foi no cemitério. Era um cemitério distante do centro, o que precisou utilizar o serviço do táxi e fazia vinte dias que não trazia flores pra repor. Havia esquecido o detalhe, no caminho percebeu que era bobagem, já que não retornaria mais, portanto tinha razão de não trazer. Quando vinha carregava flores brancas, nos dias de finados trocava pelas amarelas e em algumas exceções substituía por roxas, o que não achava bonitas.
Dentro do cemitério a mania de reparar na situação humana era chamariz de informações. Prestava atenção, sentia aromas, medos, perturbações, revelações, segredos, traições, lamurias, saia meio baleado, absorvido, como estivesse drenando o corpo, sugando-o. Não se imaginava tão machucado quando visitava, saia carregando peso que misteriosamente não obteria maneiras de explicar.

No entanto, estava para a última visita, trazendo nada, nem tampouco poemas. Não possuía cacoetes pra versos e pouco ligava pra esse tipo de arte, mas tinha fascínio por quem se aventurava.

Ele a avistou de longe com a mão erguida acenando, reparou nas luvas brancas encobrindo os braços, o vestido azul-claro, o chapéu branco escondendo o escuro cabelo e os sapatinhos, pois os pés eram pequenos. Sentada na tumba com as pernas cruzadas o esperou chegar. Gente próxima não havia, o que os deixariam a vontade.
A tumba enfeitada com azulejos de pastilhas rosa e a cruz de prata suja de pó e sujeira e na placa de aço onde se lia: “Aqui jaz um grande amor.” E o vazo com restos de flores do mês retrasado.
Ela descruzou as pernas e suspirou. Os olhos verdes claros, a pele branquinha. Ajeitou o vestido e se acomodou direito. Ao vê-lo próximo abriu o sorriso de boas vindas.
Olá, Elisa.
Disse e encostou do lado. Timidamente procurou a mão dela que gentilmente o permitiu que encontrasse e a segurasse fraternamente.
Você por aqui hoje?
É verdade. Não é o meu dia de visitas. Tenho novidade.
Ah...
Fez ar de surpresa, não dava pra ver os olhos dele, pra encontrar algum rio de segredos.
E qual seria? Ela perguntou afinal.
Um momento.
Enfiou a mão no bolso e retirou o mesmo que outrora mostrou aos outros conhecidos.
Leia.
Fez o que pediu, leu as linhas detalhadamente, abrindo a boca de espanto. Terminado, perguntou:
É isso mesmo? É o que dizem no que acabei de ler?
É sim. Tudo é verdade nas letras.
Ah... Então irá pra...
Exato. E estou pra me despedir. É a minha última vez com você...
Agora de rosto virado ela pode ver os olhos e não encontrou nenhum rio de segredos. O lábio ainda tinha o forte batom avermelhado, lábio grosso e molhado.
Leva-me contigo. Pediu para ele.
Soltou a mão dela e levou a sua a encostar-se à tumba.
Sabe que será impossível.
Sim. Falei por falar.
O silencio dominou ambos por minutos. Ninguém olhou um para o outro, o vento leve refrescava, folhas das árvores balançavam no ar e pombas rastejavam as patinhas no chão de terra. Ele não tinha mais o que fazer ali, desde que ela morreu há mais de dezenove anos nunca deixou de visitá-la, de contar as boas novas, as chatices do irmão, do trabalho que começou logo após a morte dela. Ela reclama das visitas alegando que não conseguiria descansar, na verdade não desejava que a deixasse para sempre. Não ligava para reclamações, vinha disposto e cheio de vitalidade. Horas longas a conversarem, a falar das coisas da vida, das pessoas, sorrisos e comemorações. Dezenove anos nessa rotina, sem preguiça, sem perder a razão de estar ali.
Eu visitei a família do menor que disparou contra você. – Disse ao quebrar o silencio.
Serio? – Perguntou o encarando de surpresa.
Sim. Foi tão... Tão triste ver a família naquela condição. Não há como sentir raiva, ódio, alimentar vingança e desejar a morte. Não tiveram culpa, o menino também não, e por que desejaria mal? Eu sou lá um deus que possui o direito de punir outros como eu? De julgar e fazer regras do meu jeito? Penso que não.
Fico orgulhosa de ti, muito orgulhosa.
Em seguida voltou a falar.
Mas depois, depois não te verei mais...
Está na hora do seu descanso.
Sabe que minha implicância é falsa, jamais desejei que fosse embora.
Sim, sempre soube. As coisas mudaram, deram uma reviravolta que eu até no momento estou tentando me equilibrar.
Ela tomou as mãos dele, as luvas macias a tocarem a pele, os olhos espelhos coberto de brilho, estava bonito o chapéu na cabeça, o corpinho magro no vestido. Não ouvia a respiração da mulher, nem os suspiros, nem as mãos nervosas. Por dezenove anos, essa mulher chamada Elisa foi sua esposa e num destino sem previsão a levaram, o menor, a arma, à bala perfurando o peito, sem resistência, sem tempo de salvá-la e veio à perda e a vida desmoronou...
Depois da tragédia, recomeço, novos caminhos e outra visão das coisas. Hoje é reconhecido pelo seu trabalho, sabendo que o adoram nem desconfia quem seja, vivem criando teorias. Não encontraria a melhor hora para despedidas.
Eu o liberto de mim, lhe dou asas para a tua liberdade. Está livre para voar, passarinho meu. – beijou a testa. Beijo demorado, frio e amoroso.
Te levarei dentro do coração. – Disse ele firme.
Pois vá e saiba que estarei com você onde quer que esteja.
E sempre haverá esperança. Acredite, existirá a esperança.
Eu acredito nela.
A despedida termina com leve beijo, o último adeus simbolizado num simples beijo. Na frente dele a mulher desaparece dizendo...
Sempre haverá esperança...






4





Ao terminar os degraus da escada, Arfa de cansaço. Examina o pessoal subindo, todos com energia e com os rostos despreocupados, mostram-se acostumados com o exercício que praticam com bom ar agradável.
Toma folego e não entende como escalam tão bem. E olha que não é tabagista e beber é de vez em quanto. Apaga o mistério segue na entrada do enorme complexo.

De frente a estátua do deus Hermes banhado pela luz do sol oferece uma boa vinda aos que chegam. O deus mensageiro pintando o orgulho de protetor. Mesmo que ninguém dê atenção, tinha seu motivo de guardião.
Para adentrar, portas automáticas abrem na presença da pessoa e foi que aconteceu e ele desconfiado adentra.

Um extenso complexo se expõe, de brilho rico e milhares percorrem o piso branco. Assustado, um moço do interior com medo do novo mundo e da cidade grande. Há confusão de vozes de babel moderna que bagunça e confunde. Busca a direção, as pernas travam, esforça, apressar. Prossegue.
Do alto, arquiteturas penduradas no ar, telas filmam a movimentação, câmeras piscam sem parar, disparam flashes sem assustar, vozes eletrônicas anunciam a cada dez segundos. Avista um homem negro, alto, bem-vestido. Escandalosamente o crachá se destaca no peito. Postura tranquila, de gestos lentos e olhar de vigia.
Por favor, necessito de ajuda. – Diz para o homem.
Sim? Procura alguma coisa no complexo?
- Sim, sim. Espere.
Retira o cartão e o homem lê.
Humm. É dos privilegiados. Venha comigo, senhor.
O homem negro toma a dianteira coloca os braços pra trás caminha tranquilamente.

Ao chegar, o homem abre a porta de vidro e estendendo o braço fala:
Aqui, senhor. É melhor se apressar.
Obrigado.
Mais uma vez surpreso. Surpreso com a quantidade de gente, do enorme trem Maria Fumaça nos trilhos. Uma moça de gesto gentil se aproxima.
Pois, não?
Ah.
Mostra o cartão e o bilhete a moça examina calculadamente.
Me acompanhe, estamos quase na hora do embarque.
Leva-o para fila formada e o deixa dizendo que não demorará o embarque. Agradece, observa-a indo para outro lado.
As vozes eletrônicas anunciam informações a rodo, informações sem sentido, necessárias, nada causava pânico.
Na fila o falatório domina. Homens, mulheres, idosos e crianças distraem nas conversas do dia a dia, pra esquecer a espera. Na frente a mulher gorda sem malas, de sacola plástica recheada de revistas. Finalmente. Olha o relógio e a hora. Falta um minuto.
O calafrio percorre o corpo. Ansiedade? Talvez. No cartão e no bilhete de cor caramelo, título em letras douradas e o papel perfumado de perfume desconhecido: “É um dos sorteados no Aqualung Locomotive. Compareça na data marcada no endereço indicado. Caso de duvidas consulte-nos no horário comercial. Ass: A Diretoria.”

As notícias corriam soltas. Não havia quem não comentasse a viagem na Maria Fumaça modernizada do século XXI, capacidade para trezentos passageiros e o destino que não recusaria participar. Ninguém conhecia o destino que a máquina faria e desejavam serem privilegiados. Sorte que não recusou. Sim, teve duvida, foi quebrada brevemente. Fez despedidas, deu lugar no trabalho para uma senhorinha e recebeu a liberdade da ex-esposa. Liberdade simbólica.

Finalmente. Um homem vestido elegantemente se pronuncia.
Bom dia, senhoras e senhores. Bem-vindos ao Aqualung Locomotive. Creio que cada um recebeu nas respectivas residências o bilhete e o cartão. O cartão é uma espécie de passagem que acusa na lista dos sorteados. Espero que não tenham esquecido ou não poderemos verificar a lista. Nós da diretoria agradecemos por acreditarem no nosso projeto, projeto de treze anos, desenvolvido com esforço, sonhos a realizar o que mais almejamos. Boa viagem, pois nada no mundo se comparará ao Aqualung Locomotive. Muito obrigado e adeus.

O homem parte tomando a direção da saída junto com dois homens de terno. Agitação, falatórios mais altos, isqueiro acesso, fumaça, cheiro de cigarro, alguém com sede, com frio na barriga, com pensamentos de que não prevê o que virá. Olhando pra fora da porta de vidro o complexo não parava de se movimentar. Pra cima e pra baixo, gente despreocupada, considera o que vem pra começar não era do interesse deles. Sem curiosos, sem parentes a vida continua como um dia qualquer. O primeiro apito da Maria Fumaça anuncia seu chamado. O calafrio aumenta mais.
A mulher gorda vira-se e sorri. Repara no medalhão de prata modelando o peito loiro. A fila dá os dois primeiros passos.

O segundo apito surge. Após verificação do nome é acomodado no vagão, não existia a coisa mais bela que o Aqualung Locomotive. Poltronas confortáveis, o corredor perdia de vista, carpete avermelhado enfeita o chão, janelas de cortinas japonesas, encanto e tecnologia no instrumento de locomoção.

Acomoda-se na poltrona do corredor e a mulher gorda na poltrona da janela. Tanto faz a mulher ali, quando acabasse não a veria mais, mas tem curiosidade de descobrir o que ela pretendia com a viagem. O que buscava? O que procurava? Corria atrás de algum objetivo? Não via nela do que uma vida normal, sem muita coisa importante. Não trouxe consigo bagagem somente sacola plástica com revistas.

Era tortura aguardar o acomodamento de todos. São trezentos passageiros, tarefa cansativa de realizar, felizmente nada escapou do controle e os sorteados na poltrona sem parcela de reclamação.

O terceiro apito. Desta vez forte, como grito a distancia. O motor silencioso mal se ouvia, o mar de falatórios. Hora errada de lembrar o passado. A mulher puxa conversa.
Ruim ficarmos em silencio quando se há conversas. – Diz ela.
A voz não é desagradável, o que deixa mais tranquilo.
Acho que não. Quebra o desconforto, não é mesmo?
Completamente. Bom, se não houver conversa, ao menos tive a inteligência de trazer as revistas. Passatempo gostoso e saudável.
Sente medo ao observar a cara de safadeza dela.
Retira a revista da sacolinha e tamanho foi o susto ao saber qual revista que a mulher trazia.
Na capa uma jovem modelo de cabelo claro deixava a mostra o seu volumoso busto, de boca aberta e olhar de sedução.
Reconhece a revista, igual ao que estava na casa dele.
Segura o susto, engole a surpresa. A mulher não dá atenção às matérias, abre a revista na parte mais interessante, a sessão de contos.
Conhece? – Pergunta mostrando a página.
Não, não.
Responde gaguejando. Se respondesse que conhecia abriria as portas de segredos e seria motivo pra liberar perguntas.
Não há maneira ótima de ler isso. Adoro, me excita e o cara é muito bom. Entende direitinho, amo as histórias dele.
Verdade? É interessante as histórias da revista?
Bota interessante nisso. Meu sonho é conhecê-lo e até fazer uma coisa bem gostosa com ele. – Ri. – Agora é tarde, estou aqui, mas levo-as comigo pra sempre.
Fica sem jeito ao reparar a maneira da mulher.
Leia o trecho: “Senti-me realizada com aquele corpo me amando. Os lábios batalhando contra os meus, deixando-me excitada, explodindo de prazer, não sei o quanto me seguraria pra explodir de gozo e felicidade...” Ai... Não é excitante...?
Percebo que sim.
Se o cara soubesse como faz sucesso com as mulheres...
Ele ri, se ajeita na poltrona, a Maria Fumaça abre o último apito de aviso.
Uma voz feminina começa a falar:
O Aqualung Locomotive está pronto pra começar a viagem. Estejam confortavelmente acomodados e ótima jornada. Obrigada.
As portas do vagão são fechadas e a Maria Fumaça lentamente começa a locomover. O silencio vence o falatório. A mulher entretida na revista de conteúdo adulto nem se dá conta de que é a escolhida a estar ali dentro, boa escolha para distração, arrepende de não ter feito o mesmo. De soslaio lê o nome do conto: “Aquele anjo de Carnaval.” Disfarçadamente abre sorriso, não havia mais segredos pra esconder a satisfação de sentar do lado da fã, de saber do sucesso garantido. Que dona Nina continue entretendo os leitores, os leitores querem distrações, boas ou más, não importam quais sejam. De boca fechada não contaria para a mulher quem ele é...
Alegre, reconhece mesmo sendo senhor de idade, homem muito famoso no mundo das distrações.




5



Ao despertar fica desorientado. No vagão, não há passageiros. A mulher gorda não está. A sacola com revistas de conteúdo adulto largada no chão e duas revistas abertas na poltrona. Não há passageiros, somente ele e objetos largados pra traz. As portas abertas e o Aqualung Locomotive com motor desligado. Reina silencio. Não recorda de nada, o que lembra é o aumento da velocidade, de ver a imagem da mulher sumir aos poucos e o clarão branco. Depois, depois não viu nada.
Desconfiado, vai para a saída do trem. Uma cidade abre-se, rica, iluminada e sedutora. Sua cidade, essa que é seu porto seguro, de grandiosas realizações, de conquistas e perdas. Sua cidade do passado ou do presente? O cheiro não está igual ao que sentia, havia mistério no cheiro. Não, não o cheiro da cidade que andou há anos, um cheiro novo ou antigo, não conseguia explicar.
Aos poucos, pessoas surgem acompanhadas, solitárias, com animais, contentes, apressadas, descontraídas.

Está de costas de vestido branco. O chapéu a embelezar o cabelo e o guarda-chuva a proteger do sol. Chega ao destino e o que busca alguns metros dele.
Elisa? – Chama.
Na primeira impressão o rosto dela se contrai de satisfação para se contrair de descontentamento.
Por que demorou? Estou horas esperando? – Reclama.
Desculpa. Tudo atrasou...
Faz o calar com a mão na boca dele.
Liga não bobo. Acabei de chegar. Vamos?
Ela entrega o braço para encaixar o dele e dá partida a caminhada.
Sempre haverá esperança...
Concordo. Tem toda razão. – Ele responde encarando o rosto fino e branquinho dela.
Tomam a direção pra desaparecerem no infinito da rotina da cidade. Não existiriam barreiras e tragédias e a jornada, essa não tem parada.

(Rod.Arcadia)