domingo, 11 de maio de 2014

O Grito








Roberto acordou com o grito. Não sabe de onde veio. Isso vem ocorrendo há trinta dias.


Tinha sido na terça-feira de noite, antes das vinte e uma horas. Voltava da casa do Rodolfo. Foi a convite de uma velha amiga de escola. Aproveitou os comes e bebes. Mulheres desfilando belezas e formosuras, além da namorada do dono da casa, moça atraente que chamava atenção dos homens.


Não gostou e nem se agradou do dono da casa. Que ria escandalosamente, gestos com os braços, piadas sem tom. Ficara boquiaberto com a falsidade dos convidados, que riam de qualquer assunto que Rodolfo falava e que possuía uma péssima interpretação.


Roberto ficou à vontade. Bebendo champanhe e beliscando uns canapés, casquinhas de siris e pequenas porções que ele não gostava tanto. Sem atrair os olhares, perambulava pela sala arejada, anotando com olhar crítico a decoração retrô de mal gosto.


Sua amiga, que havia dado o convite, encontrava-se em outro evento. Era a garota dos eventos na cidade, onde umas clicadas aqui e ali, em redes sociais e notícias na alta sociedade, se achava a Liz Taylor tupiniquim. Roberto se desagradava das loucuras da garota. Nunca aceitou o jeito de se demonstrar ou se aparecer com uma ridícula caipira famosa do interior. E detestava os que apoiavam, como se fosse divertido comentar um espirro extravagante dela.


Ele bebia e comia de graça, rindo do dono e reparando que o rapaz, era um arrogante filho da mãe.


Uma hora depois, os puxa-sacos raptaram Rodolfo para uma salinha. Praticamente uma partida de póquer. Ou um planejamento de dizimação da humanidade. Nunca se sabe o que esses endinheirados mimados pensam e aprendem por aí, não é de se duvidar que saiam admirando a desgraça dos coitados.


Roberto sentira uma pontinha de inveja. Pensara em fazer amizade fingida com Rodolfo. Muito bem. Tinha ouvidos lavados e limpos, não era expert em arte, filosofia, politica e conspirações de dominação global. O que não era necessário para conquistar um cidadão, que vive de festas com gente gargalhando das piadas sem graça dele.
– Te conheço?
Se assustou ao escutar a voz atrás dele. E quando virou, se assustou mais ainda.


A resposta demorou preciosos segundos. Ficara estudando a maneira de agir. Não era fácil, na sua frente, a namorada do Rodolfo.
– Acho que não. – Respondeu com uma cara de pau séria, reparando no decote extravagante que ela exibia.
– Desconfiei desde que o vi. E reparei que não entrou acompanhado. – Disse, encarando como uma fiscalizadora maliciosa.
– Uma amiga deu-me o convite. Está bonito, estou gostando de tudo.
– E quem seria a amiga generosa? E por favor, sem hipocrisia. De que merda acha que aqui está bom? Admito as falsidades dos amigos de Rodolfo, umas bostas saídas do rabo dele. Mas, de desconhecidos, não soa muito legal, não.
E não queria se encantar pela moça. Loira, de olhos verdes, usando decote numa blusinha preta com babado, lábios carnudos e o famoso batom vermelho.
– Minha amiga se chama Rose. – Falou.
– Rose… Tentando lembrar quem seria… Ah, a menina caipira famosa?
– Sim. Ela mesma.


Rodolfo se envergonhou ao perceber que era amigo de uma amiga ridiculamente falada.
– Acompanha-me numa taça de champanhe? Não é bom, numa reunião, uma dama beber e conversar com um cavalheiro, sem nenhuma bebida entre eles.


Roberto aceitou acompanhá-la e a falar de coisas não chatas. O clima não se limitava de assuntos sem interesses. Não retirava a atenção dos olhos verdes dela. Seguia a movimentação da boca. A expressão irônica, critica e maldosa e sem remorso.
– Espere. Juro que não demoro. – Disse ela.
– Ei, onde vai?


Não queria largar. Parecia que sua metade, partia-se com o afastamento dela. Talvez uma dependência estranha que ele não compreendia. E que não se acostumou a sentir.


Ficou a ver os convidados. Uma música preenchia o ar, e a curiosidade de saber o que rolava na outra sala, o deixara nervoso.


Ela voltou de roupa nova. Estava de vestido curto verde-abacate. Seu corpo se desenhava linha por linha. Pegou na mão dele, e sem se importar com o pessoal, o puxou firme.
– Vem! – O perfume deixava rastros por onde passavam.


No fim, entraram no quarto. Envolvido, permitiu que prosseguisse e lançou um que se dane. Por dentro, gargalhou de Rodolfo. Era o maioral da reunião.


E tudo feito em pé. Já que ela preferiu e que não queria, desarrumar a cama.


Quando voltaram, a festa continuava. O sumiço não chamou a atenção de ninguém, e Rodolfo havia encerrado a partida de póquer. Bebia e ria, escancarando sua boca exagerada.


A namorada levou Roberto no lugar que se encontrava Rodolfo. Ela beijou o namorado e ele sem entender, reparou que não conhecia o rapaz que a moça trouxera.
– Quem é ele? – Perguntou.
– Um desconhecido, que encontrei perdido. – Respondeu a loira, abraçando carinhosamente o namorado.
– Seja bem-vindo, moço desconhecido. Sinceramente, não te conheço de nenhum lugar. – Disse Rodolfo, beliscando um pedaço de queijo prato em cubinho.
– Ganhei o convite de uma amiga. O nome dela é Rose. É um prazer conhecê-lo.


Roberto estendeu a mão para Rodolfo, que olhou e nem retribuiu a gentileza.


– Humm, Rose? Que Rose? Eu conheço alguma Rose, minha lindinha?
– Aquela menina caipira, esqueceu é?
– Ah, essa? Ela é muito conhecida na região.


Soltou uma tremenda gargalhada, rindo da garota. Os puxa-sacos o acompanharam e Rodolfo se sentiu mal. Sentia uma pontada no peito ao saber que conhecia uma amiga caipira famosa. Só não aprovou a risada do babaca. Desejava jogar na cara, que havia transado com a namorada, não na cama, e em pé. Mas, Rodolfo, era uma bosta, que merecia porrada pra aprender a ser gente.


– Desculpa-me. Juro que não fiz por mal. – Disse Rodolfo para Roberto.
– Esquenta não. Não ligo pra isso. – Respondeu Roberto. Porém, por dentro, queria dizer umas boas verdades para o playboyzinho.
– Meu tempo por aqui se encerrou. – Disse Roberto olhando diretamente para a loira, que deixou de abraçar o namorado playboy.
– Que isso, mocinho. Falta de delicadeza, deixar a dama sozinha. – Disse a loira ao se aproximar perto de Roberto.
– Minha lindinha, não é merecedora de solidão. – Completou Rodolfo, mexendo nos cabelos lisos pretos.
– Tenho compromisso na parte da manhã. – Explicou Roberto.
– Que lástima, levantar cedo. Isso não é vida, é sofrimento. – Rodolfo soltou um risinho irônico e com olhar malicioso, encarou Roberto.
– Eu te acompanho, até lá fora. – Disse a moça, tomando a dianteira.
– Esteja convidado a retornar, meu caro, rapaz. – Disse Rodolfo se ajeitando e alisando os cabelos.
Bastaria levar a loira. Terminar o que começara. Na casa dele, a cama era livre. Só não estava em boas condições. Podia-se realizar uma transa gostosa. Sim, levaria ela, passariam a noite. E o que importava para ele, ela e o bobo do Rodolfo? Nem sentiria a falta da namorada. Haveria gente rindo, fingindo acreditar em tudo que recitasse. Esqueceria até que namorava, que a garota nem seria dele.


– E então, me largará sozinha?
– Você tem o namorado. – Disse Roberto.
– Rodolfo não necessita de mim lá dentro. Enquanto houver merdas aos seus pés, serei uma invisível. Isso chateia, leva-me ao tédio sabia? Mas vá, mesmo eu não querendo. Não sou de prender, não faz meu tipo de jogo.


Houve um rápido selinho pra selar a despedida e Roberto tomou o caminho de casa. E tudo aconteceu há trinta dias.


E nisso, entrou o grito.


Roberto tinha se arrumado para deitar, quando o grito surgiu. Estridente e feminino. Rasgado e de tom agudo. Berro de mulher, não havia dúvidas e incertezas.


Aguardou o movimento do prédio, mas nada escutou. Parecia que dormiam, apesar das vinte e duas horas. Não, nenhum ruido, nenhuma movimentação dos vizinhos e andares acima e abaixo.


E o grito continuava. Alto. O importante era que não irritava, bem calmo, e que não demonstrava desespero.


No dia seguinte, Roberto comentou com o síndico, que deu a entender que não escutara. Com o zelador, o olhar de justiça do velho cismado, retirou a vontade de expandir a conversa. O velho só aliviou quando começaram a falar do time do coração dele. Com uma total cautela de cuidados.


E o grito, que no começo não incomodava, passados os dias, não apontava nenhuma admiração em Roberto. O bendito vinha nas horas inconvenientes, que qualquer um reclamaria.


E foi o que Roberto fez e ninguém o levou a sério, jogando indiretas de que não estava bem de saúde. O que o deixara furioso.


O grito fizera perder a concentração. No trabalho, as conversas com os amigos perdiam-se em esquecimentos e sonolências. Da amiga caipira famosa, mal prestava atenção na espontaneidade que ela tratava dos eventos na cidade. A voz dela o perturbava. Mas era o grito, que não cessava de martelar como uma hipnose desconcertante.


Não deu outra, com raiva e determinado, decidiu combater o grito misterioso.


Se reforçou num pesado café da manhã. Como era dia de folga, aproveitou pra dormir mais. Uma meia hora e pouquinho por aí. Se vestiu, penteou os cabelos, calçou o tênis Adidas e saiu em missão.


Naturalmente que se fosse contar ou cochichasse com algum morador, a resposta geraria protesto e renúncia. Por desconfiar, propôs a si mesmo calar-se, sem alardear o síndico e o velho zelador.


Começara pelos andares de baixo, batendo e batendo nos dormitórios. Ele não negava o constrangimento, de entrar e vasculhar e desvendar o mistério.


Fora a vergonha dos moradores. Teve gente que socou a porta e senhoras assanhadas tentando ganhar alguma vantagem extra. O resultado foi mero desperdício.
E o síndico estivera a bater à porta de Roberto. Que falou um monte, de palavras cuspidas, de receber reclamações. Que isso não se repetisse. Disse o homem no final.


Na parte da tarde, pelas quinze horas, o grito voltou do jeito que apareceu.


Roberto abriu a porta, com a intensão de encontrar uma pessoa andando no corredor. Não encontrou ninguém.


O grito continuava no mesmo nível de altura. Então lembrou de que faltara um número, no andar de cima. Esquecera e era o único que faltava dos dormitórios.
Subiu três lotes de escadas correndo. Seu folego estava bem. Recordou que era bom não ser fumante, não faltava energia. E o grito emitia o barulho estridente. Como nenhum morador reclamou do berro? Finalmente na porta. Número par. Um número par qualquer. O morador, um senhor de setenta anos, vivendo sozinho. Uma morena de trinta anos, pagara adiantado o valor do dormitório. Não se sabe, se era filha ou parenta. Viera do interior, da fronteira do Paraná.


Ali estava o grito. Roberto apertou a campainha demoradamente. Como não tivera resposta, batera na porta. Fraco, forte, exagerado. Nada. Chamou o síndico.


O homenzinho veio, batendo o pé, reclamando como um rádio velho. Chamou a atenção do pessoal, pra reclamarem com Roberto, de atrapalhar o sossego e a paz de todos. Roberto pediu que o síndico abrisse a porta. E assim o fez.


Ao abrir, o senhor, de estatura média, careca e de óculos sentado numa poltrona solitária. De olhos fechados e cabeça baixa, dormia. Morto. O ambiente fedia, fedia demais. A maioria correu desesperada e com náusea.


O grito silenciou. Um aparelho de som, programado para acionar nos horários determinados. Roberto lançou o objeto ao chão, que espatifou sem piedade. O síndico reclamou do ato impulsivo. Seria a prova. No final, concordou com o rapaz, falando bem dele para a polícia. Caso encerrado.


Dois dias depois, de noite, às vinte e uma horas, uma visita bateu no número de Roberto.


Tinha esquecido dela, do corpo, dos cabelos longos, lábios carnudos, de tudo de bom que havia. A namorada do Rodolfo. De vestido branco curto. Batom rosa provocante.


– Sua amiga Rose que passou o endereço. Tadinha, preocupada com você. Acreditaria que também senti o mesmo? – Disse mostrando os olhos verdes iluminados.
– Sim, acredito. Sinceramente estou bem. Foi apenas um probleminha que se resolveu.
– Ah, que bom que deu certo. Não falaremos de problemas. Nem os teus e nem dos meus.


Enlaçou os braços em Roberto, que surpreso, permitiu se levar. E ela, descobrindo a abertura, aproximou a sua boca na dele.
– Muita saudade tua, sabia? – Disse, a voz sedutora e provocadora.
– Onde quer chegar? E Rodolfo?
– Ah, meu lindo desconhecido. Esquecemos essa parte da minha vida. Continuemos o que paramos naquele dia, e que as horas voam e voam.


Ah, que se dane! A loira era tudo de bom. Se soltou, não estava mais contraído, deixou o ritmo seguir o curso. Por dentro, gargalhava, gargalhava de tudo e de todos. Possuía o grito mais pulsante e vitorioso da cidade. E assim se sucedeu.


(Rod. Arcadia)







































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