sábado, 18 de janeiro de 2014

O Sr. Jonas





Encontrei o Sr. Jonas por acaso.

Nem o reconheci. Magro, semblante melancólico, cabelos ralos, o rosto seco e os olhos azuis sem brilho.

Ele parou, olhou pra trás, não reconheceu.

Depois surpreso, lembrou.
– Cresceu muito. – Confessou.

O Sr. Jonas não era a mesma pessoa de quinze anos atrás.

– Eu sou um escritor morto. – Acabei de perder a vida naquela esquina. Vê as luzes da ambulância e da viatura?

Haviam luzes e movimentos de pessoas.

– Acabei reagindo no assalto e levei tiro. – Voltou a falar.

Na atual situação ou problema que passava, convidei o Sr. Jonas a me visitar.
– Terá prazer em receber um morto em tua casa?

Gargalhei, infelizmente o deixei sem graça.

Dei o endereço e avisei que visitasse daqui a dois dias.

– Acredite jovem, morri e o meu corpo está na esquina.

Observei se afastar após algumas esquinas.

O Sr. Jonas era um grande escritor não famoso.

Nunca publicou, as editoras recusaram. Pobre dele, e
Cretinas as editoras de não reconhecerem o verdadeiro talento.

Li cinco romances e dois livros de contos. Se tornou meu escritor favorito. Mas, ele sumiu, sem deixar vestígios e foram quinze anos.

No dia que o Sr. Jonas desapareceu, saí na rua e chamei-o na esperança que surgisse, os vizinhos reclamaram e nada dele.

Aos prantos falei que o Sr. Jonas sumiu e meu pai consolou.

– Ele volta, filho.

Ele não voltou.

Tentei montar um jornal em sua homenagem, recusaram.

– Lamento, não montaremos jornal para um cidadão que nunca ouvíramos falar.

Apelava. Quem não conhecia o Sr. Jonas?
– Sinto muito, jamais vi mais gordo.

Tinha esperança que o Sr. Jonas seria encontrado e esse dia chegou.

Ele chega do mesmo jeito, toca minha mão e sinto arrepio que me remexe.
– Desculpe, minha mão é um gelo. – Explica.
– Não há nada para se desculpar.
– Você era jovem naqueles tempos e veja só, virou homem.
– Quinze anos passados.
– Senti tua falta, de uma hora pra outra o senhor some, sequer vestígios.
– E voltei. Mesmo morto.
– Sou teu único leitor, leitor favorito e fiel.
– Agradeço. Voltei para que faça um favor para mim.
– Estou as tuas ordens.
– Em três dias haverá meu enterro.
– O senhor com seu humor.
– Falo sério, quem está diante de ti, é um morto.
– É difícil não levar a situação para brincadeira.
– Sem brincadeira, estou morto realmente.
– Continue, senhor.
– Daqui a três dias meu enterro. Antes de partir definitivamente quero que me conduza aos meus companheiros. É o meu desejo, faça isso e partirei satisfeito.
– Farei tudo para alegrá-lo.
– Sempre soube disso.

Ele sorri. Um riso alegre de prazer.
– Amanhã. Amanhã realizaremos nossos objetivos.

Abre a porta e vai, e de costas com a mão levantada se despede:
- Adeus.

Espero o dia nascer com ansiedade e de manhã o Sr. Jonas chega. Está de calça e casaco preto e chapéu branco na cabeça.
– Pronto? – Pergunta.
– Mais do que nunca.

Dirigimo-nos num hotel de cor avermelhada.

Subimos à escada de madeira carcomida e batemos no número 22.

Um senhor de cabelos ralos, branco de óculos, pijama verde atende. Seus olhos brilham de contentamento ao encontrar o Sr.Jonas.

Muita emoção nos seus abraços.

Entramos, colocam à conversa em dia.

A conversa dura duas horas, saudades a serem desfeitas.

Deixamos seu Lineu e seguimos em outro bairro, numa casa de fundo de portão enferrujado.

O Sr. Jonas pede que eu bata palmas. Aparece um senhor de cabelos crisalhos. O Sr. Jonas o saúda e alegre nos recebe.

Entramos. O Sr. Jonas revela que o amigo é um excelente poeta.

– Mistura de Rimbaud e Manuel Bandeira. – Define.

O amigo de nome Carlos Manuel mostra manuscritos e vejo grandiosa riqueza. Como alguém recusa um material de riquíssima qualidade?

– É o sistema, jovem. Bruto e decadente. – Explica o Sr. Carlos Manuel.

Da conversa agradável partimos para outro bairro. Paramos numa casinha e no quintal um velho com chapéu de palha, camisa xadrez e chinelo. Cuidava do canteiro de margaridas e orquídeas.

O Sr.Jonas chama e o dono da casinha demora pra reconhecer. Pergunta quem é. E o Sr.Jonas abre os braços e diz:

– Ah, seu macaco velho, não finja que esqueceu.

Entramos e o velho nos abraça calorosamente.

Convida a entrarmos, dá café que a gente bebe, nos conta da vida, ele e o Sr. Jonas conversam das coisas que movem o mundo e de coisas antigas.

– Levei tiro.

O Sr. Jonas abre a camisa e mostra a marca da bala. Fico arrepiado e horrorizado.

Despedimo-nos e entramos no restaurante. Pedimos arroz, feijão e bife. Bebíamos Tubaína e voltamos para casa.

– Revi meus companheiros, estou muitíssimo satisfeito. Peço-te o último pedido.

– Peça que faço com maior prazer.
– Seja acompanhante do meu velório.
– Senhor, ainda com essa ideia?
– É o último pedido.

Paramos de frente ao meu portão. Não negaria um favor ao Sr. Jonas.
– Conte comigo.
– Agradecido.

De manhã ele inteiro de preto surge.

Considerando absurdo pergunto o horário do enterro na qual responde com naturalidade.

– Estamos atrasados, o enterro será às onze e meia.
Verifico no relógio.

– São dez e vinte, temos tempo. – Digo.
– Chegaremos adiantado, quero acompanhar e assistir cada movimento.

Não sei, algum problema o afeta.
Dizer que está morto e assistir o próprio velório é assunto grave.

Não tenho coragem, de que precisa de especialista, trairia sua confiança.
Entramos no bairro. Casas de portas e janelas fechadas, rua vazia e silenciosa. Os comércios fechados. Ninguém.

No entanto, lá no fundo, bem lá no fundo, uma casa despercebida sem chamar atenção e discreta, exibia porta e janelas abertas.

É pra ela que caminha o Sr. Jonas. Retive. Ele dá alguns passos e não sente minha presença. Vira para trás. Indica com a cabeça para que continue e anda.

Tento falar, a boca trava. Ando.

O Sr. Jonas de frente à casa com janelas e porta aberta. Dentro uma fraca iluminação, não se distinguia se havia alguém lá. Sem som, cântico, reza ou falatório. Silêncio.

O Sr. Jonas abre o portãozinho e fala:

– Daqui por diante tomará a frente, cheguei onde fui permitido e o momento chegou. Siga sozinho. Agradeço a maravilhosa companhia que tivemos. Adeus.

– Sr. Jonas? Não entrará?
– Aqui eu me despeço. Prossiga adiante.
– Não entendi, viemos para o seu…

Ele me interrompe.
– Velório? Teu velório, quer dizer?

Mesmo na simplicidade e ingenuidade ainda me assusta, mesmo que a voz seja sincera.

– Senhor…
- Jovem, ainda não entendeu. Sou você mais velho ou que deveria ser. Você é Jonas. Infelizmente um disparo apagou teu destino. Um disparo e a tua história no mundo se concluiu. Eu me encerro neste ponto. Até.

O Sr. Jonas balança a mão timidamente e desaparece lentamente.
– Sr. Jonas…

As vozes emergem. Cantoria?
Cantoria, cânticos, preces e louvores. O cântico termina. Começa a Ave-Maria.

São vozes femininas, vozes de senhoras, rezando a Ave-Maria.

E os passos na casa de janelas e porta aberta, um velório.

Senhoras ajoelhadas com terços rezam e no meio da sala o caixão velado.

A casa iluminada com velas de sete dias. Ocorre a vontade de aproximar, meus anseios impedem. Caminho.

As senhoras rezam com seus dedos suados no terço, estão no terceiro mistério e sigo o meu cortejo no meio delas. Ao passar próximo de uma, ela estremece, outra de soslaio seu rosto contrai de pavor. A que comanda a reza, sua voz muda de tom, mais densa, pesada e as restantes seguem no ritmo.

Ao aproximar do caixão, vejo a revelação.
E arrepio, vendo-me deitado num triste sono eterno…

(Rod.Arcadia)


















sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O Encontro




O que é a morte?
O que significa?
Por que morremos?

Tempos atrás, uma menina de nove anos perguntou sobre a morte. Da razão de levar as pessoas que amamos.
Não encontrei respostas. Respondi que morte seria o vazio, o nada existente.

Comentou que uma menina de sete anos morreu de tanto apanhar da mãe. Era a morte ou a violência que fez a criança morrer? Não respondi, não achei resposta coerente e pensei:

Quem tira a vida, nós ou a morte? Quem dá o disparo, nós ou a morte?
Quando pequeno meu cãozinho morreu. Papai consolou, dizendo que o animal ficaria bem e em paz.
Então a morte salvou o cãozinho do sofrimento? Ou a doença entregou de bandeja pra ela?

Ela traz questões, reflexões e apontamentos, saudades e lágrimas.

Papai. Hoje levantei cedo. Vou visitá-lo. Há anos que não o visito. Brigamos.
Caminho, observo pessoas, movimentos e expressões. Penso na vida, o que recebi dela.

Ontem, na hora do almoço apareceu uma moça. Tinha vinte ou dezoito anos. Branca, olhos de girassol, cabelo de margarida e guirlanda na cabeça, vestido branco de cetim. Voz serena, como o orvalho das manhãs de outubro.
– Jacó. Teu pai… Precisa vê-lo. Vá à casa de teu pai, Jacó.
Não a conheço, nem sei o nome e veio falar de papai.
– Não se atrase. Ou será tarde demais.

Arrumei-me, avisei a inquilina que talvez voltasse só amanhã.
– Aonde vai?
– Ver meu pai.

Não é longe. Resolvo ir a pé, olhar pessoas, o modo de agirem e se comportarem.

E quem seria ela a falar de papai? Sabia quem eu era.
Quis saber. Não deu. Desapareceu. Evaporou.
Arrisquei de perguntar a inquilina.
– Não quero putaria por aqui, entendeu? Ou terei que ser mais clara?

Não precisei continuar. Não a viu. Fiquei de mãos vazias.
Não sei como surgiu.

Hoje acordei pensando no velho. Nos anos que afastamos, da solidão que tornou amante de ambos.

E ela alertou da saúde do papai.
– Não está nada bem. Visite-o, Jacó.

Aparento aparência proustiana, andar calmo em passos vagarosos e filosóficos.
Lembro-me do rei, que no matinal passeio encontrou a morte. Quando o acharam, possuía serenidade e um belo sorriso.
O passeio foi precursor e presenteou com o toque da morte. Não que o monarca estivesse enfermo, naquele momento, a ceifadora da vida carregou-o para os teus domínios.

Há o caso da noiva. A senhora que perdeu o noivo no dia do casamento. Nunca mais tirou o vestido, envelheceu. Nem permitiu amor entrar no coração. Ficou solitária, primavera sem emoção.
Certo dia levantou, alguém que não se sabe perguntou:
– O que deseja?
– Nada. Aprovo o simples. Sou simplicidade em pessoa.

Encontraram na cadeira de repouso. Segurava fotografia do amado, arrumada e enfeitada. Não sofreu, não teve dor. Faleceu na simplicidade.

A morte aplica o toque gélido.

O rico avarento conheceu num dia bom. Havia ganhado uma quantia em moedas. Comemorando, deu de cara com o estranho de terno escuro, branco e pálido. Muitos comentavam que procurava o avarento.

Dois dias depois, foi encontrado morto afundado na montanha de moedas.

A quem diz que o rosto era apavorante, susto e demência. Faleceu na própria fortuna.
Já o estranho, não chegou a ser mais visto.

Meu velho e eu nos afastamos. Faz anos. Na verdade, eu me afastei.
A gente discutiu. Fiz as malas, virei nômade, retornei para São José dos Campos e não me mudei mais.

Papai soube, por orgulho, não veio me procurar.
Também por orgulho, fiz a mesma coisa.
Uma antiga namorada quis saber.
Mês de junho, bastante frio e questionou a relação de meu pai comigo.
– O que houve entre vocês?
– Brigamos e estamos brigados.
– Qual motivo?
– A gente amou a mesma mulher.

Faz anos. Caminho para revê-lo.

Uma estranha avisou que ele não está bem de saúde.
– Não se atrase. Ou será tarde demais.

Tem pessoas que enganam a morte.
O velho chinês escolheu esse método.

Por castigo e ter sido enganada, amaldiçoou com muitos anos de vida.
Presenciou entes queridos morrerem. A cada ano falecia, dando ao velho a solidão de conviver e presenciar quem ele amava indo para nunca mais voltar.

Há aqueles que a morte nem se aproxima. Ou porque o seu toque não traz efeito.
Assim era o imortal.
Pessoas nasciam e faleciam, o imortal vivo.

Testemunhou guerras, chagas, pragas e revoluções.
As épocas trafegando nos olhos.
Teve amantes, esposas e não gerou filhos. O homem que não morria, lamentava.

Como o velho chinês, porém, não trapaceou. Sofria, as pessoas que amava morriam.
– Imortalidade? Não é dom, força ou maldição. Traz nada de satisfatório. É
Amargura. Sou morto que não morre e não tem descanso e paz.

Andando, pensando no dia que sai de casa.

Mês de maio, meu velho bravejava injurias e ingratidões. Estávamos exaltados de raiva e cólera. Peguei o caminho e andei sem direção. Entrei no hotel. Ao amanhecer, peguei ônibus para Jacareí, o começo das repetidas mudanças.

O motivo da discussão foi tragédia. Alias, afetou demais em mim. O caso era típico enredo de histórias românticas. Tem horas que me culpo de ter trazido o trauma. Decidi que a melhor solução seria distanciar.

Arranjei um lugar, uma inquilina que implica, mas é boa gente. Tem vezes que saio em socorro para acudi-la nas crises de bronquite. A pobre não larga do maço de cigarros. Fuma as escondidas, tosse e pigarra a garganta.
– A senhora pode contrair câncer ou outra espécie de enfermidade.
– Que se dane. Sabe Jacó, antes de morrer, mamãe realizou seu último fumo no cachimbo de estimação. Lembro até hoje, a voz calma.
“Pegue o cachimbo na gaveta. Prepare o fumo. Morrerei, não é verdade? Que a morte aguarde bocadinho pra ter tempo de dar a tragada.”
– Não morreu de tabagismo ou coisa nesse sentido. Realizou a vontade. Mamãe… Que esteja bem no céu.

E lá ia eu salvá-la. Sabendo do que fazia as escondidas.
Encontro-me na esquina da rua de meu pai. Gera lembranças. Infância trafegada no afasto. Eu, ele, mamãe e a mulher que amávamos.

Com mamãe tive poucos momentos. Confesso que recordo vagamente. Afinal, era bem pequeno. Depois, crescido, foram constantes correrias, tombos, passeios, piruetas e cambalhotas, encontros na véspera de natal e o ano novo, o carnaval, a festa dos santos-reis, o mês junino e as quadrilhas, a copa do mundo. As celebrações.

Antes, contarei dois casos.
O primeiro era o louco barão, que fascinado construiu um casarão e nele criou leões.
Os animais domesticados num extenso aposento, alimentados, cuidados e preparados.

A loucura era grandiosa. Inocentes empregados viraram refeições. Chegaram a sequestrar filhos de moradores.
E na comemoração de aniversario o louco abraçou a morte.
Era aniversario de 40 anos.

Ordenou dias antes para não alimentar as crias.
Convidou aristocratas, burgueses e intelectuais. Até o clérigo.
Ninguém sabia das intenções. Nenhum convidado desconfiou.

Sim. Convidou à alta gente, para presenciar o desejo, vontade de ser devorado, comido e dilacerado.

Atormentados pela insanidade e impedidos de saírem, assistiram o que a mente humana proporcionou.
Viram o doido nu na jaula.

Dentro, leões famintos. Nem se deu a pachorra de esboçar uma sílaba, foi ligeiramente atacado e devorado.
Tempos depois, por ordem do governo, o casarão tombou.

Uma maneira de evitar lembrar-se do grotesco e insano dia e para não manchar a reputação da cidade.

Mas o caso surpreendente ocorreu no estado do nordeste, no recanto sertanejo, no sertão. Que por decisão, a cidade deixou de existir.

Havia o fanático Jonas Oliveira de Albuquerque. Homem adorador da morte.
Obcecado em servir a dama que ceifa vidas.
Chegou a assassinar animais.

Jonas era homem muito rico, filho único de um nobre português e de uma pernambucana burguesa. Solteiro por escolha. Chegou a estudar em seminários, porém, jamais aceitou a vida religiosa.

O fanatismo ocorreu após a perda da mãe. Pega em emboscada armada pelos inimigos do pai. Naquela época homens guerreavam para tomar posse das terras e guerras e emboscadas aconteciam. Foi desse jeito que a mãe de Jonas morreu.

Ele tinha oito anos e presenciou a tragédia. Os inimigos pouparam sua vida. E por mais que traumatizasse, o menino adorou.

Claro que tempo depois, o pai foi assassinato e Jonas ficou aos cuidados da tia que morava pelos lados do cariri.

Quando completou maioridade e se afastou do seminário, retornou a cidade e com os dotes da herança começou a construir a seita. Seita em homenagem a morte.

Não que os habitantes aceitariam uma seita nesses parâmetros. Nenhuma alma concordaria prestar orações, cânticos ou ritual que fosse.

Jonas ludibriou. Ou seja, mentiu. Manipulou. Enganou os habitantes a adorarem uma deusa sertaneja de nome Diana.

Cuja visão o fanático teve nas andanças que realizava.
Não havia Diana, nem deusa. Muitos menos na cidade, Bahia, Recife, Terras do Ceará, nordeste inteiro. Deusa do sertão e da seca ninguém conhecia.

Dissera que surgiu montada num cavalo branco, de vestido, pele branca, cada braço luvas de seda, chapéu branco e delicado, meio crochê, meio algodão. Olhos avermelhados, penetrantes e decididos. Nos pés botas e delicado cinto feminino de couro.
– Eu sou a morte.
Com essas palavras (que não podemos dar muito credito) a aparição ordenou que Jonas fizesse.
– Vá, Erga a casa. Construa o templo. Reúna o rebanho para adorar a mim.
Nos olhos assustados, viu o cavalo branco apear e tomar o caminho, deixando o pó levantar.
Abençoado, o adorador revelou a visão e a missão.

E como as pessoas eram humildes e de pequenas ideias, não demoraram e principalmente o prefeito, aceitarem a proposta.

Nisso, a ala católica se debandou, não compactuando e testemunhando um ato de desrespeito a Deus.

O que facilitou. Além de nomeado pastor da deusa Diana.
Não houve relutância. O que contribuiu a insanidade de Jonas.

Seis meses. Seis meses prestados para levantar o templo.
Para inaugurar, os cidadãos sacrificaram animais de variadas espécies. Bodes, cabras, cães, gatos, vacas, aves, burros e mulas tiveram as gargantas e sangue esparramados no altar.

Aconteceu na sexta-feira do dia 27 de março.

Reunido à população, o pastor Jonas Oliveira de Albuquerque exigiu o sangue dos moradores como ato de sacrifício, honra e glória a deusa Diana.

Ludibriados uma chacina começou.
Acreditaram numa vida melhor, que neste plano sujo e doente, preso nas mãos do inimigo. Sacrificados em honra à deusa.

Adultos, crianças, ricos e pobres, manchou o solo da cidade. Nenhum escapou, nem os recém-nascidos, as moças que paririam, os enfermos e os aleijados.

Nas palavras do líder, um mundo belo, sem macula, de amor e prosperidade e de riqueza.

O que descobriu tempos à frente, é que durou a noite inteira. Sequer forçados ou submetidos. De bom agrado morreram em favor do plano melhor.

Quando a polícia, Estado, governador, autoridades militares chegaram presenciaram o terror, encontraram Jonas de Oliveira Albuquerque morto sobre uma jovem com os seios nus em cima do altar.

Por alto, fuxico aqui e ali. Ouviram a história e a seita, até o prefeito comentou. Sequer vieram verificar e averiguar.

Jamais alma viva pisou no local. A cidade manchada, não há mais vestígios.
A tragédia contada em cordéis, poemas, trovas, musicais, peças teatrais e romances sertanejos.

Quem se deu bem foi o escritor Eduardo Gomes Teixeira, com o romance A Cidade e a Seita Recebendo elogios, principalmente na Europa e Estados Unidos.

Encerro aqui a relação que a morte carrega na humanidade.

Chegou a hora do encontro. Hora de entrar novamente na casa que um dia chamei de lar.
Puxo a trava do portão e abro. Entro.

Não ouço som. Silêncio.

A porta aberta. Silêncio.

Entro e reconheço o cheiro e recordações.

As fotografias que enfeitavam deu lugar a quadros de pinturas e gravuras malfeitas. O relógio cuco no cantinho que sempre foi dele. Era dos avós da mamãe.

Certos objetos deram espaço aos modernos aparelhos da moda.
Saio da sala. Entro no corredor.

Há três quartos. Meu, de papai e outro…

Acho que fui atraído. Quando percebo, viro a maçaneta devagar para abafar o barulho. O quarto da mulher que a gente amou…

Tudo no lugar. Nada trocado ou modificado. A penteadeira que teimava em dizer que veio da França não foi retirada. Os vidros de perfumes… Alguns nem usados. Mexo nas gavetas, pertences nas mesmas posições.

Com cuidado, esforço para abrir as portas do guarda-roupa. As roupas, vestidos, blusas, camisas, pendurados nos cabides. Papai não moveu nenhum dedo. Deixou do jeito que eu vi da última vez.
Nem a cama.

Ela ainda vive na casa…

Deito. Preciso buscar recordações.
Tinha o nome das musas de José de Alencar. As heroínas dos romances, que nunca arrisquei de procurar.

Seu nome era Lucíola.

Apareceu num dia de chuva. Numa quinta-feira de tarde. Chegou com meu pai.
Fazia onze meses que mamãe morreu. E desde a morte dela, papai nunca mais demonstrou alegria.

A chegada dela trouxe novos ares.
– Jacó, filho, venha aqui um pouquinho.

Estava do lado dele, jeitinho tímido, belo de admirar.
– Jacó. Essa é Lucíola. Ela cuidará dos afazeres da casa.

Tinha os olhos da cor do mel, o cabelo escuro, bem escuro e liso, usava vestido simples, uma cor rosa desbotada, o rosto miúdo, fino, a estatura média, a primeira vista pareceu uma índia fugida dos romances que sempre desprezei. Não sei como, mas despertou em mim o interesse que não encontrei em nenhuma mulher.
– Prazer. Jacó.

Estendeu a mão e num aperto leve, conheci Lucíola.

Não resmungou oi, olá, prazer em te conhecer. Nada. Apenas me deu a mão.
De leve apertei. Encarei os olhos. Lucíola conquistou meu coração.
– Vem. Deixe as malas no quarto.

E papai a levou ao quarto. Nesse dia nem botei os pés na rua.

Lucíola virou assistente da casa. Fazendo serviços necessários. Como: lavar, cozinhar e limpar.

Aos poucos descobri a origem do nome e também de que parte viera.
– Lá dos lados de Minas Gerais. Na região da mata. Comentou.

Percebi que meu pai mudara, demonstrava galanteios e elogios a nossa hospede. O estranho era que não percebi que ele também nutria interesse.

Após seis meses estávamos íntimos de Lucíola. Ela sentia o mesmo sentimento.

Já resolvia os problemas sem a nossa ajuda. Além de buscar o que faltava e realizar as necessidades que precisava.

Eu não esperava a hora, revelar o que sentia. Há tempos encenava o momento e a hora veio.
Não como desejava e como sucedeu. Tudo deu errado…

Papai e Lucíola voltavam do passeio. Alias, passeios eram constantes entre os dois.

Enfim, retornaram do passeio e a fisionomia de Lucíola era de chuvas de pratas de alegria.

Ela ganhou no dia anterior um belo vestido e sapatos.

Eis que veio a revelação não percebi do que ocorria debaixo do meu nariz.
– Jacó, filho. Preste atenção.

Ele tomou a mão dela e apertou num carinho de proteção.
– Fique de testemunha que aqui o amor floresceu. O amor entre mim e Lucíola.

Então pasmado, papai continuou.
– Esteja em testemunha, de que nesse lar o casamento breve se realizará.

Tomei de choque. Disfarçadamente desabei na poltrona. Boquiaberto esbocei um silencioso parabéns.

Neste dia, tomei de raiva de que a pessoa que amava, na verdade noivaria com meu pai e casaria.

Tranquei-me no quarto e permaneci.

Todo homem é impuro, todo homem vive em cólera. Ele, na ira, não enxerga nada. Somente o vermelho, ou a cegueira do ódio e da raiva. E da inveja, por que não?

Pois eram os três sentimentos que brotaram após saber que não teria Lucíola e de que seria esposa do meu velho.

Não desejei felicidades, não desejei alegrias para o casal. Em pensamento, apenas uma ordem: roubar a moça.

Sim. Deixei a mesquinhez dominar. Comecei meu duelo secreto.

Antes desistisse ou esquecesse e partisse. Mas, não. Meu dever ferido precisava de cura.

E foi numa tarde.
Aguardei que papai saísse e aproveitei para dizer o que estava preso dentro de mim.
Fiz. A reação de Lucíola não foi mais do que esperado. Surpresa com a declaração. Negou. Explicou que amava meu pai, que estava em divida por lhe dar lar, conforto e hospitalidade que não recebia há muito tempo.

Com essa divida, o mais que pagaria era teu amor.
– Essa afirmação seria casar?
– Sim. Está acertado. Nada mudará.

Furioso, puxei e a beijei.
Lucíola mordeu meu lábio, fazendo-me soltá-la. Bofeteou minha cara.
– O que pensa que está fazendo! – Gritou e se trancou no quarto.

Arrependido, pedindo que me perdoasse, que esquecesse o que ocorreu. Em prantos gritava para deixá-la em paz, que respeitasse tua privacidade.

Antes tivesse ouvido a razão. Antes evitasse o que fiz.

Os dias que passaram Lucíola não vinha nada bem. Ficou calada, respondendo pouco e vivia pelos cantos em choro. Papai perguntava e eu para despistar inventava qualquer assunto.

Nem os passeios e os novos presentes puderam tirar o semblante que carregava. E eu era o culpado…

Até que num certo dia aconteceu o que não queríamos ter acontecido.
Havia retornado da caminhada. Refleti o erro e revelaria que ocorreu. Decidi que a solução mais correta era sair de casa.

Tive sensação estranha. Chamei meu pai, mas nada de responder. Envergonhado chamei Lucíola. E tive a mesma resposta.

Tinham saído a passeio. Imaginei.

Entrando no corredor, a porta do quarto entreaberta. Curioso, espiei. Deitada de barriga pra cima e a cabeça deitada de lado. Entrei.

Foi ao aproximar que vi a faca deitada do lado. E o pescoço num profundo ferimento.

Desesperado, fui acudi-la. Infelizmente não havia mais o que fazer. Morta.

E da tragédia, trouxe a discussão e a separação.

A magoa é grande. Hoje estou de volta, deitado na cama da mulher que amei e que por minha culpa não está entre nós.
Levanto. Seguro o choro que teima sair dos olhos.

Ouço tosse. Papai.
Tosse mais uma vez.
Saio do quarto.
A tosse vem do aposento dele.

Tosse de novo.
– Pai!
Falo alto caminhando na direção do som.
– Pai!

E vejo-o deitado numa cara de susto.
– Pai, sou eu. – Falo entrando.
– Jacó? É você… É você de verdade? – Pergunta.
– Sou sim, Jacó.

Seu rosto muda de expressão. Fecha feito um tempo ruim.
– O que faz aqui? – Pergunta ríspido.
– Uma moça apareceu e avisou da saúde do senhor e alertou-me para visitá-lo. Vim o mais rápido que pude.
– Moça? Você disse moça? – Pergunta mudando sua expressão de tempo ruim.
– Foi. Veio do nada e desapareceu do nada.
– Idiota. Avisei-a para não te procurar. Maldita mulher intrometida!

Era minha vez de ficar surpreso.
– Mas, pai. Ela disse que o senhor não está bem de saúde. E informou que se não viesse, seria tarde demais.
– Ah, que bobagem! Essas pessoas são exageradas. É uma doença à toa. Isso passa.

Volta à expressão de mau humor. E me pergunta:
– Veio pra saber como estou ou também por outro motivo?

Encara-me desafiando e se ajeita na cabeceira da cama.
– Vim pra te ver, só isso. – Respondo de cabeça baixa.
– Reparou no quarto dela? Não troquei e retirei nenhum objeto. Roupas, perfumes, sapatos, a cama, tudo do mesmo jeitinho que deixou.
– Eu… Eu não vi. Não entrei.
– Tem certeza?
Pergunta. Lança olhar duvidoso.

– Sim, tenho. – Respondo meio sem jeito.
– Tudo bem. Já que descobriu que não estou tão mal como lhe disseram, volte para o lugar que viera. – Diz ríspido e grosseiro.
– Pai?
– Anda, Jacó. Agradeço a preocupação, mas, por favor, vá embora!

Não acredito que está me mandando embora.
– Não trate teu filho desse jeito!
– Não tenho filho. Perdi-o há muito tempo.
– Não fale assim, sou teu filho!
– Não tenho. – Fala de mau humor, de cara fechada. – Não quero uma pessoa que tirou da minha vida à mulher que eu amava…
– Pai?
– Vá embora, Jacó. Não pertence mais a esse lugar. Por favor, saia e deixa-me sossegado.
– Pai…
– Vá logo!
– Só vim lhe dizer que lamento tudo que aconteceu. Tudo mesmo. E falar que nunca deixei de te amar. Te amo. Não se esqueça disso. Teu filho te ama. Adeus. Adeus papai.

Saio de coração partido, no silêncio da casa.

Nem imagino a reação. Não quero supor e inventar coisa alguma.

Ganho a rua. Ganho a calçada.

E ela vem. Sim, ela vem. À moça que apareceu pra mim.

Com vestido de seda, chapéu branco antigo do século XVIII, luvas que encobre os braços, sapatos delicados e o rosto sereno.

Sorri pra mim, numa expressão de alívio.
– Ah, veio visitar o pai.
– Sim. – Digo num tom de desanimo.
– Hum, que bom. Ainda bem que deu tempo pra se verem.
– Certamente.
– Sim.
– É melhor entrar, está sozinho. Depois do que teve lá dentro…
– Não estou por causa do seu pai, Jacó. Vim atrás de você.
– De mim? Pensei que era conhecida dele.
– Ah, é complicado de explicar. Nem consigo compreender.

Olho-a desconfiado. Sem imaginar quem possa ser.
– Moça, quem é a senhorita, afinal?
– Ah, Jacó. Não prestou atenção em nada? Tua trajetória foi falar da minha pessoa. Possuo várias formas, sentidos e aparências. Não consegue saber quem eu sou?
– Do que est…
– FUUU!
–.Todos vão para um lugar; todos foram feitos do pó, e todos voltarão ao pó.
 


(Rod.Arcadia)