sábado, 18 de janeiro de 2014

O Sr. Jonas





Encontrei o Sr. Jonas por acaso.

Nem o reconheci. Magro, semblante melancólico, cabelos ralos, o rosto seco e os olhos azuis sem brilho.

Ele parou, olhou pra trás, não reconheceu.

Depois surpreso, lembrou.
– Cresceu muito. – Confessou.

O Sr. Jonas não era a mesma pessoa de quinze anos atrás.

– Eu sou um escritor morto. – Acabei de perder a vida naquela esquina. Vê as luzes da ambulância e da viatura?

Haviam luzes e movimentos de pessoas.

– Acabei reagindo no assalto e levei tiro. – Voltou a falar.

Na atual situação ou problema que passava, convidei o Sr. Jonas a me visitar.
– Terá prazer em receber um morto em tua casa?

Gargalhei, infelizmente o deixei sem graça.

Dei o endereço e avisei que visitasse daqui a dois dias.

– Acredite jovem, morri e o meu corpo está na esquina.

Observei se afastar após algumas esquinas.

O Sr. Jonas era um grande escritor não famoso.

Nunca publicou, as editoras recusaram. Pobre dele, e
Cretinas as editoras de não reconhecerem o verdadeiro talento.

Li cinco romances e dois livros de contos. Se tornou meu escritor favorito. Mas, ele sumiu, sem deixar vestígios e foram quinze anos.

No dia que o Sr. Jonas desapareceu, saí na rua e chamei-o na esperança que surgisse, os vizinhos reclamaram e nada dele.

Aos prantos falei que o Sr. Jonas sumiu e meu pai consolou.

– Ele volta, filho.

Ele não voltou.

Tentei montar um jornal em sua homenagem, recusaram.

– Lamento, não montaremos jornal para um cidadão que nunca ouvíramos falar.

Apelava. Quem não conhecia o Sr. Jonas?
– Sinto muito, jamais vi mais gordo.

Tinha esperança que o Sr. Jonas seria encontrado e esse dia chegou.

Ele chega do mesmo jeito, toca minha mão e sinto arrepio que me remexe.
– Desculpe, minha mão é um gelo. – Explica.
– Não há nada para se desculpar.
– Você era jovem naqueles tempos e veja só, virou homem.
– Quinze anos passados.
– Senti tua falta, de uma hora pra outra o senhor some, sequer vestígios.
– E voltei. Mesmo morto.
– Sou teu único leitor, leitor favorito e fiel.
– Agradeço. Voltei para que faça um favor para mim.
– Estou as tuas ordens.
– Em três dias haverá meu enterro.
– O senhor com seu humor.
– Falo sério, quem está diante de ti, é um morto.
– É difícil não levar a situação para brincadeira.
– Sem brincadeira, estou morto realmente.
– Continue, senhor.
– Daqui a três dias meu enterro. Antes de partir definitivamente quero que me conduza aos meus companheiros. É o meu desejo, faça isso e partirei satisfeito.
– Farei tudo para alegrá-lo.
– Sempre soube disso.

Ele sorri. Um riso alegre de prazer.
– Amanhã. Amanhã realizaremos nossos objetivos.

Abre a porta e vai, e de costas com a mão levantada se despede:
- Adeus.

Espero o dia nascer com ansiedade e de manhã o Sr. Jonas chega. Está de calça e casaco preto e chapéu branco na cabeça.
– Pronto? – Pergunta.
– Mais do que nunca.

Dirigimo-nos num hotel de cor avermelhada.

Subimos à escada de madeira carcomida e batemos no número 22.

Um senhor de cabelos ralos, branco de óculos, pijama verde atende. Seus olhos brilham de contentamento ao encontrar o Sr.Jonas.

Muita emoção nos seus abraços.

Entramos, colocam à conversa em dia.

A conversa dura duas horas, saudades a serem desfeitas.

Deixamos seu Lineu e seguimos em outro bairro, numa casa de fundo de portão enferrujado.

O Sr. Jonas pede que eu bata palmas. Aparece um senhor de cabelos crisalhos. O Sr. Jonas o saúda e alegre nos recebe.

Entramos. O Sr. Jonas revela que o amigo é um excelente poeta.

– Mistura de Rimbaud e Manuel Bandeira. – Define.

O amigo de nome Carlos Manuel mostra manuscritos e vejo grandiosa riqueza. Como alguém recusa um material de riquíssima qualidade?

– É o sistema, jovem. Bruto e decadente. – Explica o Sr. Carlos Manuel.

Da conversa agradável partimos para outro bairro. Paramos numa casinha e no quintal um velho com chapéu de palha, camisa xadrez e chinelo. Cuidava do canteiro de margaridas e orquídeas.

O Sr.Jonas chama e o dono da casinha demora pra reconhecer. Pergunta quem é. E o Sr.Jonas abre os braços e diz:

– Ah, seu macaco velho, não finja que esqueceu.

Entramos e o velho nos abraça calorosamente.

Convida a entrarmos, dá café que a gente bebe, nos conta da vida, ele e o Sr. Jonas conversam das coisas que movem o mundo e de coisas antigas.

– Levei tiro.

O Sr. Jonas abre a camisa e mostra a marca da bala. Fico arrepiado e horrorizado.

Despedimo-nos e entramos no restaurante. Pedimos arroz, feijão e bife. Bebíamos Tubaína e voltamos para casa.

– Revi meus companheiros, estou muitíssimo satisfeito. Peço-te o último pedido.

– Peça que faço com maior prazer.
– Seja acompanhante do meu velório.
– Senhor, ainda com essa ideia?
– É o último pedido.

Paramos de frente ao meu portão. Não negaria um favor ao Sr. Jonas.
– Conte comigo.
– Agradecido.

De manhã ele inteiro de preto surge.

Considerando absurdo pergunto o horário do enterro na qual responde com naturalidade.

– Estamos atrasados, o enterro será às onze e meia.
Verifico no relógio.

– São dez e vinte, temos tempo. – Digo.
– Chegaremos adiantado, quero acompanhar e assistir cada movimento.

Não sei, algum problema o afeta.
Dizer que está morto e assistir o próprio velório é assunto grave.

Não tenho coragem, de que precisa de especialista, trairia sua confiança.
Entramos no bairro. Casas de portas e janelas fechadas, rua vazia e silenciosa. Os comércios fechados. Ninguém.

No entanto, lá no fundo, bem lá no fundo, uma casa despercebida sem chamar atenção e discreta, exibia porta e janelas abertas.

É pra ela que caminha o Sr. Jonas. Retive. Ele dá alguns passos e não sente minha presença. Vira para trás. Indica com a cabeça para que continue e anda.

Tento falar, a boca trava. Ando.

O Sr. Jonas de frente à casa com janelas e porta aberta. Dentro uma fraca iluminação, não se distinguia se havia alguém lá. Sem som, cântico, reza ou falatório. Silêncio.

O Sr. Jonas abre o portãozinho e fala:

– Daqui por diante tomará a frente, cheguei onde fui permitido e o momento chegou. Siga sozinho. Agradeço a maravilhosa companhia que tivemos. Adeus.

– Sr. Jonas? Não entrará?
– Aqui eu me despeço. Prossiga adiante.
– Não entendi, viemos para o seu…

Ele me interrompe.
– Velório? Teu velório, quer dizer?

Mesmo na simplicidade e ingenuidade ainda me assusta, mesmo que a voz seja sincera.

– Senhor…
- Jovem, ainda não entendeu. Sou você mais velho ou que deveria ser. Você é Jonas. Infelizmente um disparo apagou teu destino. Um disparo e a tua história no mundo se concluiu. Eu me encerro neste ponto. Até.

O Sr. Jonas balança a mão timidamente e desaparece lentamente.
– Sr. Jonas…

As vozes emergem. Cantoria?
Cantoria, cânticos, preces e louvores. O cântico termina. Começa a Ave-Maria.

São vozes femininas, vozes de senhoras, rezando a Ave-Maria.

E os passos na casa de janelas e porta aberta, um velório.

Senhoras ajoelhadas com terços rezam e no meio da sala o caixão velado.

A casa iluminada com velas de sete dias. Ocorre a vontade de aproximar, meus anseios impedem. Caminho.

As senhoras rezam com seus dedos suados no terço, estão no terceiro mistério e sigo o meu cortejo no meio delas. Ao passar próximo de uma, ela estremece, outra de soslaio seu rosto contrai de pavor. A que comanda a reza, sua voz muda de tom, mais densa, pesada e as restantes seguem no ritmo.

Ao aproximar do caixão, vejo a revelação.
E arrepio, vendo-me deitado num triste sono eterno…

(Rod.Arcadia)


















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