Fazia tempo que eu não
caminhava nessa rua, quinze anos e não esperava que estivesse do
mesmo jeito. Algumas casas continuam na mesma, com suas pinturas,
portões e muros pequenos.
Garotos brincam de bola. O
gol feito com par de chinelos como antigamente.
Certas pessoas nem sabem
quem sou, moradores que chegaram depois da minha ida. Mas, dos
antigos eu sei, e eles não esqueceram de mim, deve ser as fotos que
enviei para os meus pais.
Quinze anos sem pisar no
bairro.
O portão mudou, porém, a
casa nada novo. Bato palmas, o cachorro vira-lata de cor caramelo e
branco vem correndo do fundo do quintal. Não me conhece, minha mãe
falou que o nome é Tutu, fica latindo pra mim.
Dos fundos mamãe
ordena: - Tutu, fica quieto!
O cachorro obedece, corre na
direção dela.
– Quem você estava latindo?
– Era eu,
mãe.
Minha mãe não conteve a
emoção, corre pra abrir o portão, abraça-me, puxa para dentro. O
vira-lata late, acho que é ciúmes.
– Quieto, Tutu! O
cachorro vai chorar no quintal.
Minha mãe pega meu braço e
leva-me pra dentro, grita para meu pai. – Osvaldo, Osvaldo! Venha
cá homem, nosso filho chegou!
Papai sai do quarto, arrasta
sua sandália de couro com seu olhar de duvida. – Ele veio… chega
perto de mim e abraça fortemente.
Mamãe me faz sentar no
sofá, entra na cozinha e enche de pães de queijos e suco de goiaba.
Bom voltar, bom estar ao lado deles.
Minha mãe conduz ao meu
antigo quarto e ele continua no mesmo jeito. O armário, os pôsteres,
os bonecos dos comandos em ação, as revistas do Super-Homem, do tio
Patinhas, do Homem-Aranha e do Batman, as coleções de figurinhas de
jogadores de futebol, as de botão e as miniaturas de veículos dos
anos 60.
Mamãe me deixa sozinho.
Deito na cama, sinto o velho colchão, o travesseiro, o gostoso
travesseiro. Espreguiço, fecho os olhos, não reconhecia como é bom
sentir isso.
E por que voltei? Já que vivia bem em Paris com
um bom trabalho. Tinha uma vida agitada, não nego isso, no entanto,
o emprego em Paris era agradável. Fui atendente de uma cafeteria e
nas horas de folga tocava sax numa banda de jazz num bar parisiense.
Morava sozinho num modesto quarto que possuía cama, guarda-roupa,
criado-mudo e banheiro.
Voltar para São José dos
Campos não estava nos meus planos, não neste momento.
Minha mãe bate na porta: -
Filho vem comer, o almoço tá pronto.
Levanto, papai sentado
retira seu almoço.
Sento na outra ponta da mesa. Como de costume,
mamãe coloca almoço no meu prato. – Hoje preparei picadinho de
carne para comemorar sua volta. – Diz ela. Enche o copo de suco de
abacaxi.
Aí aparece Tutu latindo pra
mim como se eu fosse um invasor, um malfeitor. – Tutu, vai pra
fora! Minha mãe o expulsa a ponta pés e ele sai chorando.
–
Não sei no que deu nele. – Diz meu pai.
Deixamos isso de lado e
começamos a comer.
Terminado, volto no quarto, abro as duas
malas e coloco as roupas no cabide dentro do armário. Há uma
janela, daquelas folhadas, caminho até ela para olhar e.
Tutu de frente, talvez
esperando eu aparecer. Grunhe raivoso e salta para pegar meu rosto.
Minha mãe entra e Tutu late, se entendesse a língua dos cães,
saberia que o latido dele é ofensa a minha pessoa.
– Vai
deitar, Tutu! – Grita mamãe.
O vira-lata amacia e sai da
janela.
– Estou colocando as roupas no armário. –
Falei.
Minha mãe senta na cama. – Seu pai saiu, foi jogar
bilhar. –
Diz passando a mão no
lençol. – É bom voltar, não é?
– Sim. A senhora manteve
tudo no lugar. Como anda a vizinhança?
– Lembra da Marialva
filha da Rocicleide?
– Como eu poderia esquecê-la. O que tem
ela?
– Não contei pra você, coitada… A menina se envolveu
com gente ruim acabou assassinada.
– Não acredito! – Digo
surpreso.
– Mataram em frente do portão da casa dela. Disseram
que foram duas pessoas numa moto que chegaram e dispararam.
–
Sinto muito pela dona Rocicleide. No que a Marialva estava
envolvida?
– Em droga filho, vivia por aí com esses moleques
fumando porcaria, falaram até que estava grávida.
Marialva,
a menina loura e magra que os garotos adoravam levá-la para
“brincar” de sacanagem. Quantas vezes satisfazia-me dentro da sua
casa quando a mãe trabalhava. Mas, o lugar era no fundo da casa da
dona Mercedes. Iam quatro ou seis moleques para fazerem tudo que
queriam com a Marialva.
Depois crescemos, Marialva
virou mulher, começou a usar droga, ofereceu um cigarro de maconha e
mamãe fala que a coitada morreu. Resolvo perguntar da turma.
–
E o Marquinhos, mãe?
– Ah, esse engravidou uma mocinha e
casou. Mora em Jacareí.
– A senhora não falou isso pra mim.
– Não sabia que era necessário contar sobre a vida dos vizinhos.
– A senhora falou de Marialva.
– Escapou.
Marquinhos, excelente
ponta-direita de futebol de rua. Com ele nosso time não perdia.
Chegou a fazer testes no Corinthians.
– E por que deveria falar?
Nunca perguntou, nem quis saber do bairro. – Reclama.
Verdade.
– Porque
voltei, mãe.
– Arrume suas coisas e saia, encontrará os
garotos da infância sentados na calçada.
– Quando terminar
irei. – Respondo.
Tutu ouvindo minha mãe falar volta a
latir na janela, um latido escandaloso como um chamado de desafio.
– Cala boca, Tutu! – mamãe coloca a cabeça pra fora da janela.
Espanta o vira-lata. – O que deu nesse cachorro?
Ciúmes. A atenção que
minha mãe dava agora é toda para mim. Não havia ninguém, eu chego
e ele se sente rejeitado. Tutu tem razão, nem deveria ter voltado
para São José dos Campos.
– Algum problema, filho?
–
Nada sério.
– Faça o que falei há pouco.
– Quando
ajeitar tudo farei.
Minha mãe deixa eu
arrumando a roupa, curioso, saio a janela e
Tutu grunhe, afasto, antes
que comece a latir e sei que o vira-lata não sairá, sentinela. Quem
diria, sou inimigo da minha própria casa. Então, por que voltei?
– Por que voltei?
O vira-lata querendo um
pedaço de mim.
Paris, deveria ter ficado em
Paris.
Paris, lá tinha Laura,
cantora de boate, tínhamos ou temos uma relação, brigamos quando
disse que voltaria. Reclamou que eu fugia dela, me bateu.
– Vá,
volte para os braços da mamãezinha!
Quase bati nela, deu
raiva o tapa que levei. Estava bêbeda, tomou uma garrafa de uísque,
veio implorar pra mim não viajar. Perguntou se eu não a amava, que
não estaria me satisfazendo.
– Tenho que ir, Laura.
Pediu desculpa. Nunca
resisti àquela boca grande, o corpo magro e o cabelo curto e preto
cheirando perfume de morango.
Senti o gosto de uísque em
sua boca, logo sem roupa. Tivemos uma excelente despedida.
Trouxe à única coisa que
fará me lembrar dela. Um punhal chinês. Disse que ganhou de um
diplomata que queria casar com ela, adorava sua voz.
– Fique,
não terei nenhuma utilidade.
Teimoso volto na janela e
Tutu na mesma posição. Desta vez encaro.
Nos encaramos. Provoco:
–
Este lugar é meu, vira-lata.
Avança, late, quer me
pegar, salta de fúria, minha mãe afugenta o cachorro.
-
Terei que levá-lo no veterinário, nunca agiu assim.
O motivo é
à perda de atenção, eu roubei dele.
– Sairei filho, volto
logo. Quando seu pai chegar, diga que fui na casa da Nair.
E fico sozinho. Sozinho,
não. Há o Tutu no quintal. Isso não importa, é um cão, vira-lata
na verdade. Pensa que a casa é tua, vira-lata? De jeito nenhum. A
casa é minha sempre foi minha. Se tem alguém que deve reclamar esse
alguém sou eu. Entrou, roubou o carinho da minha mãe, quem tem que
achar ruim sou eu, não você seu, vira-lata!
Rio, rio de mim mesmo, da
situação ridícula que acabo de fazer.
– Que idiotice
discutir com o cachorro.
Tento amaciar Tutu,
convencê-lo a encerrar a rixa de que não sou usurpador e que não
roubei mamãe dele. Ele não está na janela.
Vou ao quintal.
Sei resolver, sempre encontro um meio de resolver de uma maneira que
não posso detalhar.
Deitado na cama limpo a mancha
avermelhado escuro do punhal. Meus pais não voltaram, estou sozinho.
Uma onda de solidão bate em mim.
Por que voltei para São
José dos Campos? Para casa?
Levanto. Derrubo o punhal. Ele cai,
pula duas vezes no piso, ouço o som de metal.
Ai. O que foi
que eu fiz?