quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Num Certo Carnaval






Estava de odalisca e eu de pirata, carnaval de 1976, São José dos Campos, antigo salão de bailes na Rua Quinze de Novembro. Todo mundo pulando, alegria, fantasias, confetes, purpurinas, animação e lança perfume.
Tinha um jeitinho encantador de dançar, mexia os braços, pulava, requebrava como ninguém. Eu era e sou uma lástima, nem sabia o porquê de estar lá. Culpa dos amigos, que te convencem com possibilidades disso ou daquilo, principalmente se a possibilidade se refere a mulheres. Tá bom, aceitei. Até porque tinha levado um fora meses atrás.
E lá estava eu, ela também, no meio do salão, aglomerados de gente cantando, dançando e gritando. Foi ela que me viu feito peixe fora d’água, perdido na multidão. Parou na minha frente começou a brilhar, parecia vaga-lume piscando sem parar uma luz rosa. Sem jeito eu sorri, retribuiu. Tomou minha mão e saiu a me puxar pelo salão. Não tive como escapar, me encontrava bobo dançando com a menina.
Que canseira! Eu bufava mais do que ela. Convidei pra bebermos alguma coisa. Concordou. Meus amigos felizes pulando na fantasia dos irmãos Metralha. Uma cuba libre? Bom, muito bom, me respondeu. Única bebida que bebia quando saia nos fins de semana, hoje em dia ninguém gosta de cuba libre. Bons anos setenta.
Emitia o brilho rosa, aos poucos trocou por violeta mais forte, fraco e médio. Ficava mudando de cor a cada palavra que falava.
   Estranho...

   O quê?

   Você, parece um vaga-lume cheio de luzes.

   Tem medo de mim?

   Eu? Imagina. Nunca encontrei alguém que emitisse luzes.
   Tudo tem sua primeira vez.

É, tinha razão, eu era tão anormal quanto ela.

— Vem!
Puxou de volta pra dançar. Dançamos. Ficamos coladinhos, quando a beijei brilhou luz amarela e depois verde claro, esquecemos tudo ao redor, não ouvimos mais nada, acho que senti meus pés suspensos no ar, de olhos fechados não queria abrir pra confirmar.
Chamei pra sair, pra casa. Tinha discos da Nara Leão, Tom Jobim, Chico Buarque. Topou. Nem despedi dos amigos. Saímos correndo.
Nem arrancamos as roupas direito. Cama, caímos na cama. No começo estranhei aquele corpinho magro brilhando em luz rosa. Deitei sobre ela, beijo e assim começou pra durar minutos.
Minutos depois estávamos na cama escutando Nara Leão. Cigarros nas mãos, olhando para o teto. Cansados? Sim. Olhava-a, pensativa, o corpo não exibia luzes. Que coisa, na hora da transa foi arco-íris, terminado, deixou de exibir. Até o semblante mudou, o rosto, o corpo... Não, o corpo era o mesmo, magrinho, porém não a mesma menina que conheci no salão.
Era tão sem graça. Preferia de antes, com luzes. Pois diante de mim, uma moça normal, de pele branca, cabelo escuro, estatura alta me encarou.
   Acabou carnaval.

— Sim. Acabou a alegria. — Respondi.
Mas queria dizer que as cores também se foram, que a menina que conheci não estava mais do meu lado e que minutos antes me amou. Tragou o cigarro, levantou, vestiu-se logo. Não enxergava mais um corpo bonito, igual às outras, que se vê por aí andando pra cima e pra baixo. Cinderela de carnaval?
— Adeus.
Disse baixinho, mal deu pra ouvir, também dei meu adeus sem energia. Virei-me de lado, triste, sentindo vazio, arrependimento. No outro dia seria quarta-feira, quarta-feira de cinzas. Nara Leão cantava, talvez quisesse me acompanhar na tristeza. Maneira estúpida de encerrar o próprio carnaval.
Amanhã, quarta-feira de cinzas, só haveria o cortejo e nada mais.






terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

A Volta do Filho Querido





Fazia tempo que eu não caminhava nessa rua, quinze anos e não esperava que estivesse do mesmo jeito. Algumas casas continuam na mesma, com suas pinturas, portões e muros pequenos.

Garotos brincam de bola. O gol feito com par de chinelos como antigamente.

Certas pessoas nem sabem quem sou, moradores que chegaram depois da minha ida. Mas, dos antigos eu sei, e eles não esqueceram de mim, deve ser as fotos que enviei para os meus pais.

Quinze anos sem pisar no bairro.

O portão mudou, porém, a casa nada novo. Bato palmas, o cachorro vira-lata de cor caramelo e branco vem correndo do fundo do quintal. Não me conhece, minha mãe falou que o nome é Tutu, fica latindo pra mim.
Dos fundos mamãe ordena: - Tutu, fica quieto!

O cachorro obedece, corre na direção dela.
– Quem você estava latindo?
– Era eu, mãe.


Minha mãe não conteve a emoção, corre pra abrir o portão, abraça-me, puxa para dentro. O vira-lata late, acho que é ciúmes.

– Quieto, Tutu! O cachorro vai chorar no quintal.

Minha mãe pega meu braço e leva-me pra dentro, grita para meu pai. – Osvaldo, Osvaldo! Venha cá homem, nosso filho chegou!

Papai sai do quarto, arrasta sua sandália de couro com seu olhar de duvida. – Ele veio… chega perto de mim e abraça fortemente.

Mamãe me faz sentar no sofá, entra na cozinha e enche de pães de queijos e suco de goiaba. Bom voltar, bom estar ao lado deles.

Minha mãe conduz ao meu antigo quarto e ele continua no mesmo jeito. O armário, os pôsteres, os bonecos dos comandos em ação, as revistas do Super-Homem, do tio Patinhas, do Homem-Aranha e do Batman, as coleções de figurinhas de jogadores de futebol, as de botão e as miniaturas de veículos dos anos 60.

Mamãe me deixa sozinho. Deito na cama, sinto o velho colchão, o travesseiro, o gostoso travesseiro. Espreguiço, fecho os olhos, não reconhecia como é bom sentir isso.

E por que voltei? Já que vivia bem em Paris com um bom trabalho. Tinha uma vida agitada, não nego isso, no entanto, o emprego em Paris era agradável. Fui atendente de uma cafeteria e nas horas de folga tocava sax numa banda de jazz num bar parisiense. Morava sozinho num modesto quarto que possuía cama, guarda-roupa, criado-mudo e banheiro.

Voltar para São José dos Campos não estava nos meus planos, não neste momento.

Minha mãe bate na porta: - Filho vem comer, o almoço tá pronto.

Levanto, papai sentado retira seu almoço.
Sento na outra ponta da mesa. Como de costume, mamãe coloca almoço no meu prato. – Hoje preparei picadinho de carne para comemorar sua volta. – Diz ela. Enche o copo de suco de abacaxi.

Aí aparece Tutu latindo pra mim como se eu fosse um invasor, um malfeitor. – Tutu, vai pra fora! Minha mãe o expulsa a ponta pés e ele sai chorando.
– Não sei no que deu nele. – Diz meu pai.

Deixamos isso de lado e começamos a comer.

Terminado, volto no quarto, abro as duas malas e coloco as roupas no cabide dentro do armário. Há uma janela, daquelas folhadas, caminho até ela para olhar e.

Tutu de frente, talvez esperando eu aparecer. Grunhe raivoso e salta para pegar meu rosto. Minha mãe entra e Tutu late, se entendesse a língua dos cães, saberia que o latido dele é ofensa a minha pessoa.
– Vai deitar, Tutu! – Grita mamãe.

O vira-lata amacia e sai da janela.
– Estou colocando as roupas no armário. – Falei.
Minha mãe senta na cama. – Seu pai saiu, foi jogar bilhar. –
Diz passando a mão no lençol. – É bom voltar, não é?
– Sim. A senhora manteve tudo no lugar. Como anda a vizinhança?
– Lembra da Marialva filha da Rocicleide?
– Como eu poderia esquecê-la. O que tem ela?
– Não contei pra você, coitada… A menina se envolveu com gente ruim acabou assassinada.
– Não acredito! – Digo surpreso.
– Mataram em frente do portão da casa dela. Disseram que foram duas pessoas numa moto que chegaram e dispararam.
– Sinto muito pela dona Rocicleide. No que a Marialva estava envolvida?
– Em droga filho, vivia por aí com esses moleques fumando porcaria, falaram até que estava grávida.

Marialva, a menina loura e magra que os garotos adoravam levá-la para “brincar” de sacanagem. Quantas vezes satisfazia-me dentro da sua casa quando a mãe trabalhava. Mas, o lugar era no fundo da casa da dona Mercedes. Iam quatro ou seis moleques para fazerem tudo que queriam com a Marialva.

Depois crescemos, Marialva virou mulher, começou a usar droga, ofereceu um cigarro de maconha e mamãe fala que a coitada morreu. Resolvo perguntar da turma.
– E o Marquinhos, mãe?
– Ah, esse engravidou uma mocinha e casou. Mora em Jacareí.
– A senhora não falou isso pra mim.
– Não sabia que era necessário contar sobre a vida dos vizinhos.
– A senhora falou de Marialva.
– Escapou.

Marquinhos, excelente ponta-direita de futebol de rua. Com ele nosso time não perdia. Chegou a fazer testes no Corinthians.

– E por que deveria falar? Nunca perguntou, nem quis saber do bairro. – Reclama.

Verdade.
– Porque voltei, mãe.
– Arrume suas coisas e saia, encontrará os garotos da infância sentados na calçada.
– Quando terminar irei. – Respondo.

Tutu ouvindo minha mãe falar volta a latir na janela, um latido escandaloso como um chamado de desafio.
– Cala boca, Tutu! – mamãe coloca a cabeça pra fora da janela. Espanta o vira-lata. – O que deu nesse cachorro?

Ciúmes. A atenção que minha mãe dava agora é toda para mim. Não havia ninguém, eu chego e ele se sente rejeitado. Tutu tem razão, nem deveria ter voltado para São José dos Campos.
– Algum problema, filho?
– Nada sério.
– Faça o que falei há pouco.
– Quando ajeitar tudo farei.

Minha mãe deixa eu arrumando a roupa, curioso, saio a janela e
Tutu grunhe, afasto, antes que comece a latir e sei que o vira-lata não sairá, sentinela. Quem diria, sou inimigo da minha própria casa. Então, por que voltei?
– Por que voltei?

O vira-lata querendo um pedaço de mim.

Paris, deveria ter ficado em Paris.

Paris, lá tinha Laura, cantora de boate, tínhamos ou temos uma relação, brigamos quando disse que voltaria. Reclamou que eu fugia dela, me bateu.
– Vá, volte para os braços da mamãezinha!

Quase bati nela, deu raiva o tapa que levei. Estava bêbeda, tomou uma garrafa de uísque, veio implorar pra mim não viajar. Perguntou se eu não a amava, que não estaria me satisfazendo.

– Tenho que ir, Laura.

Pediu desculpa. Nunca resisti àquela boca grande, o corpo magro e o cabelo curto e preto cheirando perfume de morango.

Senti o gosto de uísque em sua boca, logo sem roupa. Tivemos uma excelente despedida.

Trouxe à única coisa que fará me lembrar dela. Um punhal chinês. Disse que ganhou de um diplomata que queria casar com ela, adorava sua voz.
– Fique, não terei nenhuma utilidade.

Teimoso volto na janela e Tutu na mesma posição. Desta vez encaro.

Nos encaramos. Provoco:
– Este lugar é meu, vira-lata.

Avança, late, quer me pegar, salta de fúria, minha mãe afugenta o cachorro.

- Terei que levá-lo no veterinário, nunca agiu assim.
O motivo é à perda de atenção, eu roubei dele.
– Sairei filho, volto logo. Quando seu pai chegar, diga que fui na casa da Nair.

E fico sozinho. Sozinho, não. Há o Tutu no quintal. Isso não importa, é um cão, vira-lata na verdade. Pensa que a casa é tua, vira-lata? De jeito nenhum. A casa é minha sempre foi minha. Se tem alguém que deve reclamar esse alguém sou eu. Entrou, roubou o carinho da minha mãe, quem tem que achar ruim sou eu, não você seu, vira-lata!

Rio, rio de mim mesmo, da situação ridícula que acabo de fazer.
– Que idiotice discutir com o cachorro.

Tento amaciar Tutu, convencê-lo a encerrar a rixa de que não sou usurpador e que não roubei mamãe dele. Ele não está na janela.

Vou ao quintal. Sei resolver, sempre encontro um meio de resolver de uma maneira que não posso detalhar.


Deitado na cama limpo a mancha avermelhado escuro do punhal. Meus pais não voltaram, estou sozinho. Uma onda de solidão bate em mim.

Por que voltei para São José dos Campos? Para casa?
Levanto. Derrubo o punhal. Ele cai, pula duas vezes no piso, ouço o som de metal.

Ai. O que foi que eu fiz?