segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Distração




Saiu para comprar cigarros e…
Entrou nesses botecos com porta igual aos filmes de faroeste. Lembrança velha, no comercial, a propaganda de cigarros, olhos admirados e bobos. O pai, doido de fumar, um atrás do outro, o cheiro, a voz, cigarro humano, tomou apreço, um lado libertário, fumar era ato de macho, melhor que enfrentar valentões, a mulherada estasiada pra beijar os carinhas que fumavam, só charme, pra mostrar de bonito.
Saiu pra comprar cigarros e…
Calor, boteco abafado, música, música calma, de termino de expediente. Pouca gente, animação zero. No balcão, prateleira de bebidas, outra prateleira, encontrou o que queria. A cara do velho que atendia letargia pura. Que vai querer? Sem jeito falou da cachaça do alambique. É muito boa. O velho com ar malicioso. Trouxe a garrafa e o copo, dobrou a dose. Conta da casa, a metade você paga. Beberia de uma vez, uma loira, despercebida, o encarou, lábios destacados, batom vermelho, mulher clichê, saia curta, pernas brancas em meia calça preta de renda, bebia cerveja, garrafa cheia e gelada.
Bebeu a cachaça. Se arrependeu. A cerveja era mais tranquila. Só levaria tempo pra beber. É policial? A moça arriscou perguntar. Embriagada não estava. Olhos sóbrios, gestos sóbrios. Enxergou beleza, decote bonito, seios médios na blusinha. Não. Não sou policial. Tenho cara? Tem jeitão de tira. Que bom que errei. Oras, cometeu algum crime? Tenho medo de polícia, cometi porcaria nenhuma. Libertou um sorriso pra ele. Voltou a beber a bendita bebida, bebeu metade. Disfarçou, calor estranho agitou o corpo, quase perdeu o folego.
Nunca te vi. Falou a loira, a cerveja tinha ido embora. Encheu, deu um belo gole. Sai pra… Interrompeu. Ela nem deveria saber. Curiosidade mata. Entrei hoje. Bom lugar. Desculpa qualquer. Arranjou coragem pra terminar a dose, que sensação terrível, que sofrimento! O velho saiu, foi ver o que o cidadão queria, estava bêbado, na mesa vodca e porção de calabresa. É um bom lugar, de gente feia. A moça sorriu. As mesmas pessoas, os mesmos pedidos. Cair na rotineira é chato pra caramba. Que pena, né? Pena? Querendo soar engraçado? Ficou sem graça. Pediria o maço de cigarros e cairia fora. Infelizmente o velho se escafedeu no fundo do boteco. Ela bebeu outro copo da cerveja, levantou do banquinho. Disse no ouvido dele. Estarei no banheiro. Deu leve mordida na orelha. Andou, o velho retornou, nem perguntou da mulher. Engoliu o restante da cachaça. Desta vez não teve nenhum mal-estar. Limpou a boca com o papel. Olhou na direção do banheiro, a loira esperando, a prateleira, o maço ainda lá. Vou ao banheiro. O velho balançou a cabeça positivamente. Abriu a porta. Pensei que desistiu. Ou fugido. O puxou para si, enlaçou-o. Era delicioso escutar a respiração dela, envolvente, sedutora. A voz excitante, provocativa. Faz programa? A moça riu. É engraçado, moço. Sem perguntas. Saiba que sou casado. Quieto! Começaram o beijo e os movimentos aos poucos aumentando no calor abafado.


Ela saiu primeiro. Pagou, deu um até amanhã e foi embora. Ele veio em seguida, o velho encarou, temeu que perguntasse. Pagou, disse até mais. O boteco vazio, sem graça, monotonia pintada. Deu calafrio, andou mais rápido pra sair. De fora, ar agradável. Saiu pra comprar cigarros e… distraiu. Perdeu-se na multidão sem fim.


(Rod.Arcadia)





quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Isabela














Seu nome era Isabela, mas de bela não tinha nada. Faltava em beleza e ganhava em gentileza.
Morava ela e o pai, o Seu Genaro, que botava homem pra correr. Pobre do velho, que pensava que aqueles que vinham era pra pedir a mão da filha em casamento.
E a moça sonhava em casar, isso é o que segredava para as amigas, todas noivas com seus príncipes de cidade pequena. Namorando da maneira que as mães ensinaram. Isabela não tinha mãe, morreu jovem, quando a menina tinha quatro aninhos. Sabendo que não havia ninguém para ensiná-la, entristecia-se mais ainda.
Um dia na vila apareceu um moço vindo de longe. Não era das proximidades, já que as características não se pareciam com as pessoas dali e de outras localidades. Tinha pele branca, cabelos claros e olhos esverdeados e quando falava o sotaque era diferente.
As moças se encantaram, faziam charmes e tentativas de chamar atenção de tudo, como pratos da região, animais exóticos, perfumes, vestiam a melhor roupa, pensaram em desfazer os noivados. Foi um alvoroço total.
Contaram a novidade para Isabela, mas o pai esperto ouvira das bocas dos compadres do estrangeiro, que se instalou na vila. Ela ficou na dela, sem dar a entender que se interessou.
Ninguém sabia o motivo, as intenções e o que procurava o estrangeiro. Falava pouco e esse pouco não revelava muita coisa. O lado feminino não ligava, o importante era na beleza do homem, uma beleza natural.
É claro que Isabela teve interesse, de tanto as mulheres falarem. Não atrairia nenhum interesse no fulano. Negou se lamentar, reconhecia que era páreo perdido.
As tentativas de conquista não resultaram em sucesso, o que deixaram as mocinhas inconformadas do desprezo do príncipe.
Num determinado dia, Isabela e o pai foram as compras. Os mantimentos estavam nas últimas e precisava de reposição.
Foi aí que Isabela viu pela primeira vez o estrangeiro do outro lado. Reconheceu, não tinha como não adivinhar. Rapaz branco, cabelos loiros, alto e magro.
O pai também viu, preferiu o silêncio, nem reclamou. Isabela temeu, imaginou que estivesse sido flagrada olhando o estranho.
Quando o rapaz a visualizou, paralisou e desorientado, sem saber da direção que queria prosseguir. De certa forma, a donzela lhe tirou a atenção. Seria falta da beleza?
As amigas tinham razão. Que belo homem! Pensou. Só que não possuía tempo para pensar e Seu Genaro não acharia bom.
Estava tarde da noite, ela e o pai ouviam notícias no rádio quando escutaram batidas na porta.
Quem será uma hora dessas? – Perguntou Seu Genaro.
Vou ver.
Isabela levantou, destrancou a porta e abriu. Parado na frente o moço que veio de outro lugar. Que surpresa.
Quem é? – Perguntou o pai.
É o estrangeiro. – Disse Isabela.
Quem?
Rapidamente Seu Genaro levantou com cara azeda e feia e foi logo demonstrando que quem mandava ali era ele.
O que quer? Não nada nesta casa. Volte de onde saiu!
E o rapaz, um tanto embaraçado, explicou no seu sotaque.
Me desculpar. Não desejar aborrecimento. Eu garantir. Eu vier de muito longe por um incrível motivo. Vim procurar moça Isabela.
O quê! Com se atreve a falar assim comigo? Minha filha não é interesse de ninguém. Se retire, vamos, se retire, antes que sobra chumbo nessa magreza.
Eu explicar. O senhor compreenderá.
Compreendo. Compreendo que ela não está pra noivar. Tome o rumo e encontre outra pessoa.
Não entender a mim. Não querer
Por favor, é melhor ir. – Disse Isabela com dó do estrangeiro.
Ok. Eu irei. Me desculpar. Adeus.
Isabela observou-o indo embora, andava devagar, com as mãos nos bolsos da calça e cabisbaixo. Como teve dó dele…
Feche a porta, Isabela!
E fechou. Havia algum fato que o estranho queria dizer. Se entristeceu.
Os dias passaram, a vida continuava naquela rotina. Nisso, casais que chegaram a noivar desmancharam noivados e namoros. Rapazes foram melhorar de vida em terras novas. As meninas em curtir mais a vida, afinal, são muito novas pra se prenderem num casamento.
O que realmente modificou era a maneira de verem Isabela, tudo por causa do moço. E o que queria, sabendo que de nada chamava atenção nela? As amizades se romperam, pois pra elas, a companheira sem saber, roubou o famoso pretendente.
Sem sucesso, argumentou de que não existia nada entre ela e o rapaz. Caçoaram, alegando que se fazia de desentendida e que carregava esperteza. Se faltava beleza, restava ao menos a desculpa da inteligência.
Isabela se isolou. Se isolou do mundo.
Seu Genaro, assistindo a amargura da filha, não pensou duas vezes, pegou a espingarda e foi atrás do culpado. Infelizmente ou felizmente não o encontrou. Partira bem cedo, na manhã antes do sol apontar no bico do morro, entrou no barco pra nunca mais retornar.
Meses e semanas se foram e o estado de Isabela piorou. Viera o medico e não adiantou, cada dia, a amargura tirava um pedaço de vida da pobrezinha.
Isabela não resistiu muito tempo. Tristeza do Seu Genaro. A vila abalada.
Velaram o corpo na casa do Seu Genaro. Deram banho no corpo, vestiram-na com o vestido que usava nos dias de eventos, fizeram um lindo rabo de cavalo, o cabelo liso e clareado chegava quase nas nádegas. Só choradeira das amigas arrependidas, o coitado do pai se lamentava, que pena ver o homem sofrendo.
No terceiro dia. Sim, terceiro, pra velar os mortos durava três dias, isso pra que ninguém tivesse desculpa de que não conseguiu tempo para ver o falecido.
Chegado o período, o corpo levado e preparado para colocá-lo no caixão e conduzido ao cemitério.
Eis que emocionados pelo momento ou nem perceberam, o corpo começou a brilhar, um brilho azul-celeste. A luz muito forte, não havia como não notar.
– Olha, olhem pra ela! – Disse alguém.
E perplexos, olharam surpresos. Até o pai, com os olhos incrédulos, desacreditado no que acontecia.
O brilho consumiu a moça. Aquilo foi demais para Seu Genaro, foi um grito de desespero, piedade,  para alguns, medo, loucura, correram, se debandaram.
Ainda não havia terminado. E quem permaneceu, contou aos que vieram depois.
Pergunte a qualquer, um que estava no dia e responderá:
– É verdade. Vi com meus próprios olhos. A moça, a filha do Seu Genaro, se transformou numa revoada de passarinhos azuis.
Quem presenciou acreditou. O corpo transmutado de passarinhos azuis. Eram muitos. E correram para desvendar a direção das aves. Seu Genaro ficou. Agradeceu que a filha estava bem. Sentou e rezou uma Ave-maria e não desistiu de chorar.
Os pássaros seguiram no horizonte, desaparecendo no infinito.
Isabela. De bela não tinha nada. E quem se importava?

(Rod. Arcadia)






quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O Mundo





Foi de surpresa que chegou em casa. Dia treze, não era sexta, mas quarta-feira trouxe malinha simples e bolsa a tiracolo pendurada no ombro. Papai disse pra ficar a vontade, chamou mamãe que estava na cozinha preparando almoço. Veio rápido, contente abraçou-a abraço bem apertado e logo tomou na mão a malinha falando que era bom tê-la conosco. Nesse dia que conhecemos Narinalva.

No dia que Narinalva chegou eu tinha nove anos, com sua timidez do interior, bichinho do mato, meus pais a tranquilizaram mostrando que não havia perigo.
Fiquei surpreso, disse olá sem jeito que respondeu com sorriso tímido, dias depois acostumada não existia a moça que vimos na primeira vez.

Narinalva de pele cabocla, cabelo liso, longo e escuro, olhos de mel, tinha mania de pintar as unhas de vermelho e o lábio de batom cereja, gostava de cantar sem se envergonhar da desafinação e a amávamos.

Papai a trouxe através de um amigo, o Seu Rogério, espécie de padrinho, não conhecia a origem de Narinalva e nunca procurou saber, quando soube que mamãe precisava de alguém para ajudá-la nos afazeres avisou papai da novidade. Papai gostou, imediatamente mandou buscar a moça.


E permaneceu com a gente até o dia que teve que nos deixar.
Ficamos bons amigos, pois me levava na escola. Mesmo com nove anos, mamãe não aceitava eu ir sozinho e Narinalva fazia a gentileza. Eu adorava, já que íamos de mãos dadas e era provocação aos meus amigos e era bom receber na hora da entrada um gostoso beijo molhado no rosto.


Nas noites brincava comigo, contava histórias horripilantes, não sentia graça em historinhas de príncipes e princesas, de sapos enfeitiçados. Mamãe protestava argumentando que eu não conseguiria dormir e urinaria na cama, alegava que estava mocinho e não tinha medo de nada. Papai orgulhoso de mim, só ria, pedia pra mamãe se acalmar e tudo continuava normal.
Quando eu adoecia vinha Narinalva cheia de carinho a cuidar de mim, sarava rapidinho.

No entanto, sabendo que era ótima pessoa, cuidadosa, sem preguiça com qualquer tarefa não sabíamos quem era Narinalva. Carregava mistérios, não revelava muito da vida, se insistisse nas perguntas arrumava jeito de despistar e saia na tangente e nós deixávamos em paz.

Às vezes puxava assunto, respondia que sua origem era diferente das outras. Então a dela era especial? Perguntei. E abria gargalhada exagerada e ria da minha bobice. Não que eu achasse ruim, pelo contrário, sequer conseguíamos estar chateados com ela. No entanto, o caso da origem de Narinalva foi largado até o dia da aparição...

No dia da aparição estava nervosa, olhos grandes de preocupação. “A hora tem seu fim. Sim, tem seu próprio fim.”
O que dizia não havia sentido pra mim nem para meus pais. Nervosa, tivemos que acalmá-la, ardia em prantos e não dizia nada com nada. Fiquei com medo, mamãe e papai chamariam o médico ou levaria no hospital, recusou, o que sentia nenhuma medicina humana ajudaria, a hora chegou ninguém pararia.

Chegou aos poucos, aquela gente, gente estranha, a pé e descalça, vinte, trinta, cinquenta, a conta perdia, se confundia, quem seriam não sabíamos, Narinalva sabia. “É chegado o momento do retorno.” Que retorno? Perguntou mamãe e Narinalva apenas tremia. “Leve-me, leve-me pra fora, tenho que ir e voltar a ser o mundo.”

Obedecemos. Levamos e a quantidade mais esquisita se amontoando ao redor da nossa casa. Muita gente adulta, crianças e animais. Mas quem seriam? Somente Narinalva responderia.

A rua lotou. O bairro curioso pra descobrir qual seria a ligação de Narinalva com aquelas pessoas.
“Não temam, são de paz. Vieram em minha procura.” Respondeu Narinalva.
Foi aí que um ancião de pele parda tomou a frente. Andava apoiado no cajado, de pés descalços, vestido num pano branco pra esconder a nudez.
“Tudo bem. Não há perigo.” Narinalva tranquilizou.
O ancião se aproximou e Narinalva deu alguns passos.
“Viemos pra retornar. Todos preparados. Viemos em busca do mundo.” Disse o ancião.
“Estou pronta, aguardando há anos. Preparada para recebê-los”
“Que seja consumado. Abra. Receba tuas criaturas novamente.”

E foi assim que Narinalva se despediu e nos deixou. No dia não entendemos, depois com o passar compreendemos a resposta simples que deu: “Sou o mundo e nada mais.”

Retirou o vestido, vimos à nudez exposta. Um buraco na barriga foi se originando, crescendo a cada segundo, aumentando mais e mais. Aquela gente de passos lentos atravessava ia consumindo. A cada passagem aumentava e Narinalva desaparecia.

Era tanta gente, tanta gente voltando para o mundo, que depois entendemos ser Narinalva. Narinalva o mundo, o mundo bonito de pessoas estranhas.

Jamais esqueci. Se passaram anos e eu lembro de cada detalhe, a despedida, os comentários, a repercussão nos meios de comunicação, enfim, espalhou como rastilho de pólvora.
Lembram-se do caso como: A Moça que era Mundo.

Não moro mais na cidade. Meus pais se mudaram para outra localidade onde ninguém soube da história.
Eu me formei em advocacia e moro na região norte de Minas Gerais, vivo tão bem que pego olhando o céu pra encontrar o mundo de Narinalva.


(Rod.Arcadia)

Seu Nonô










Eram misteriosos os olhos. Era fascinante a mistura calma que compunha seu ser.
Seu Nonô, apelido ganhado quando mocinho, agora um velho, marcado de feridas, de sonhos sonhados e misticamente acalentados.
Seu Nonô, um negro, vindo de longe, apareceu na vila de um lugar de não sei onde. Instalou-se, fez a própria casinha. Não trouxe gente, nem mulher nem filhos, trouxe tralhas, panelas e o coração pra dizer que isso basta. Era carpinteiro, vivia no lar a descascar madeiras e a lixar, dando trato aos móveis da vizinhança, colocava novinho em folha, sem nenhum prejuízo, pra deixar clientela alegre e confiante.
Devoto católico, levantava todas as manhãs de domingo a ir à missa, de vez em quanto ia aos sábados, missa das sete da noite, quando havia vontade, ficava mais tarde pra ajudar os fiéis e o padre, que morava fora da vila e tinha automóvel despencado e despenado. E se não carecia vontade, lá ia dar as mãos para a benção do padre e saía às pressas. E de lá ficava, sequer víamos o rosto dele, porque víamos na janela, a olhar gente na rua, que por cima não era movimentada, vila vazia, quase fantasma. Movimentada nos dias de festa, festa na vila somente de igreja, de resto não encontraria. E morríamos de tédio, desejando um sonhar de meninos a voar dali, pra conhecer se o outro lado à vida era mais gostosa de viver, fazer do homem um sonho sonhado.
Mas Seu Nonô nem curioso ficava de conhecer outros lugares, sequer comentava, se ouvia tal assunto, criava carinha de desgosto e desaprovação. Possuía seus contras e não reclamava de quem almejava tal desejo.
E quando carícia de vontade construía carros de madeira para os meninos, bonequinhos e cavalinhos. Era mais nas temporadas dos dias das crianças e o natal. No Cosme e Damião enchia a criançada de doces e balas.
Um dia perguntei pra mamãe, se um dia reparou nos olhos dele.
– Já sim. Olhos que procuram alguém nas estrelas, né?
Não imaginei como imaginou mamãe, mas continha algo de procura, de busca, de misteriosos vazios perdidos. Desenhavam segredos trancados no interior, talvez o sufocasse, talvez o incômodo acostumasse ou que acostumou ao incômodo. Se havia, nunca deu mostra, totalmente na dele de silêncio outonal.


Até que um dia o Seu Nonô adoeceu.
Vieram às mulheres da vila, mamãe também foi. Era febre danada que o homem contraiu, tremores e alucinações. Chamaram o doutor da cidade mais próxima, esse de tão bêbado, não resolveu, o único que o povo recorria e era difícil porque vivia o dia inteiro enchendo a cara. A solução seria chamar o doutor da capital, só que levaria três dias de viagem e até lá o Seu Nonô poderia ter batido as botas.


Resolveram que a melhor solução era rezar, ajuntou o pessoal na intensão de que melhorasse e voltasse a ficar bem. Convocaram velhas rezadeiras, daquelas que carregam enormes rosários no pescoço, que oram pra tudo, seja o que for. E nada, nada ajudou, continuava na mesma situação. Alguém mencionou uma missa das sete em plena sexta-feira, de que nesse dia era melhor para as almas. Não deram bola pra assuntos espirituais e a missa sim, portanto que fosse feita no domingo como de costume.


E nada de melhorar, parecia que se entregou sem descobrir a causa da enfermidade. Davam como morte certa, que preparassem o caixão e as velas para o velório. Aceitaram uma última reza, um terço e se não melhorasse levaria pra capital e o deixasse num hospital para algum médico solucionar a cura.


Estava toda vila na casa do Seu Nonô rezando e cantando hinos de adoração, noite de quinta feira, beirando as vinte e horas. Na verdade, foram às mulheres que ficaram dentro, quase todas. A casa não comportava tanta gente e os homens é que ficaram do lado de fora junto com o restante das mulheres e as crianças de vigília, caso algum perigo aparecesse na hora.


Foi nesse período que escutamos o som de cavalo correndo, em forte galopada, muito apressado, nervosamente chegando no local.
E assim presenciamos, ela chegar, uma moça muito jovem e muito bonita, montada num negro corcel. Parou de frente a casa. Não pronunciou palavra nenhuma. Saltou do cavalo e caminhou pra dentro. Pra mim era uma deusa, uma rainha sem igual, de grandiosa beleza, um anjo que pousou na Terra.
Pra surpresa dos presentes chegou-se perto do doente, abaixou a cabeça e falou: “Estou aqui. Fique bem, não vá. Nosso encontro, você sabe, não tardará a chegar.” Beijou a testa e sem falar com ninguém saiu e montando no corcel descarregou a galopar pra bem longe.


No dia seguinte o milagre aconteceu, Seu Nonô curado, falando bem e com muita vontade de trabalhar. Antes, com todo mundo preocupado foram na outra cidade trazer o médico bêbado pra examinar. Não encontrou nada, estava bem de saúde, febre não havia. Tudo, tudo certo.
Milagre! Diziam alguns. Foi à moça misteriosa! Disseram outros. Ficaram nesse jogo de milagres e moça misteriosa. Discutindo quem curou o Seu Nonô.
A moça seria alguém próxima que ele negaria se houvesse ligação.
Certo dia por distração me revelou que quando jovem enamorava uma bela moça branca de nome Isabel, que eram felizes e apaixonados. Estavam prontos pra casar, infelizmente os pais da moça não concordavam e o pai sem piedade assassinou a filha na frente do Seu Nonô. Morrera nos braços dele a coitadinha. Por culpa da tragédia começou a vagar pelo mundo completamente desorientado, só encontrou a paz sendo carpinteiro, não buscando um novo amor. Pra ele que dissera que na idade que está o amor tomou asas e voou. Felicidade tamanha com a solidão completou.
Mas... E os olhos que procuram algo nas estrelas? Eles estão lá, vivos, iluminados e talvez chegue um dia que não precisarão olhar para o alto e caso o dia chegar é que Seu Nonô estará lá juntinho delas.


(Rod.Arcadia)






domingo, 22 de setembro de 2013

E Assim Continua...

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Bate uma vontade de entregar a vida. Após sessenta e seis anos pensar na entrega é válido. Um motivo concreto é o tanto de passagens que ocorreu nos anos. Foram muitas, boas, dolorosas, tempestades e calmarias. O cabelo ralo com cheiro de talco sabe. O cabelo não nega, nunca negou. Nem o resto do corpo, que com o convívio se aposentou. O corpo sabe, é hora de se entregar.

Não seria se entregar à morte? Morrer, falecer, bater as botas, ir pra um lugar melhor? Tanta faz! Pra alguém na idade encontrar um nome adequado não teria mais importância. Sim, com certeza, não havia importância. Até suas botas de sargento concordava num mero devaneio descontraído. Aposentadas também estão às botas. Lustradas, limpas e cheirosas. Não há chulé, ah não! Sabe cuidar delas tão bem, mais que os outros pertences que ficavam com ciúmes.

Levanta muito cedo. Tão cedo que a escuridão ainda domina a cidade. Sentado na cama, olha a parede, escuta o próprio respirar e assiste as danças das últimas mariposas na lâmpada. Logo no clarear do dia voltam pra suas casas para descansar. Acorda cedo, não quer encontrar o sono, não encontraria sono nenhum. Hora certa pra pensar na própria morte. Tão cedo assim?

Liga o aparelho de som, estação de rádio. “Num fio de cabelo no meu paletó.” * Troca. Revira pra cima e pra baixo o botão do aparelho, só dão notícias trágicas. “Moça jovem é encontrada no matagal. Indícios de violência sexual” “Assaltantes invadem casa de bairro de classe média e fazem vítima.” “Ciclone arrasa a região norte dos Estados Unidos.” Desliga. Distrai fazendo café.

O dia clareia. Pensar em morrer tira o pouco de vontade de beber café. Bebe na marra, sem pão, sem bolo e sem nada. Gosta desse jeito, sem digerir nada cedo. Guarda para o almoço. Disseram que não era saudável esperar até o almoço pra começar a digerir. Não é homem de obedecer a conselhos bobos e baboseiras. Gosta de mandar e não de obedecer. Foi sargento, tem no sangue o lado mandão de comandar. Velho de guerra enferrujado.
Arruma a cama. Como é organizado faz tudo direitinho. Dobra o cobertor e enfia junto com o travesseiro no guarda-roupa. Não há hora mais correta pra pensar em deixar a vida. Pega a toalha, entra debaixo do chuveiro, pensa, pensa e pensa. Não tinha preparado o plano da própria morte. Não necessita de planos. Pra ele, ex-sargento, sessenta e seis anos, descarta planos no momento. E como seria e como deveria ser?

Lembra-se do veneno de rato. Pois dias desses por abuso uma dessas criaturinhas invadiu seu quartinho. Era rato enorme, de assustar qualquer cidadão. Sem amedrontar do pequeno e nojento bicho trouxe do mercado o veneno. Espalhou pra todo canto, debaixo das velhacarias, buracos e frestas. Procurou o bendito, não estava em nenhum lugar. Pra onde teria ido? O rato roubou? Depois que colocara não sentiu mais a presença do roedor, que safado levou o veneno junto. Foi ai que se lembra da vizinha de porta, a dona Nice.
– Ah, poderia me emprestar pra botar lá em casa? Estou ouvindo barulhos estranhos de noite.
– Posso sim, dona Nice.
E emprestou pra vizinha e por lá ficou. Não lembrava, pois a preocupação com o rato havia terminado. Esqueceu e precisava do objeto, necessário pra realizar a vontade de...

Busca desculpa pra chegar à vizinha e pedir de volta. Mas é dele, não necessita de desculpa pra obter o próprio objeto.

A vizinha dona Nice esquecida pela família. Contava que teve o único filho levado, preso e desaparecido pela ditadura. Nunca mais o encontrou. Sozinha, não conseguiu apoio, veio parar na vila, no aluguel do quartinho, muito antes do ex-sargento, prevê qualquer coisa de errado, farejadora de problemas alheios. Prestativa, nunca recusou ajuda, pronta pra ajudar qualquer pessoa, conhecida ou desconhecida.

Não é difícil pedir de volta. Teria que aguardar até ela acordar e abrir a porta. Saia pra padaria buscar pão e leite para o café e assim falaria:

– Bom dia, dona Nice. Poderia por favor, devolver-me o veneno de rato que emprestei semanas atrás pra senhora? Preciso urgentemente.
– O bicho entrou de novo no quarto?
– Não, não. Não é pra isso que eu quero.
– Hum, se não há mais nada pra que precisa?
– Bom, dona Nice, o que emprestei é meu, então tenho o direito de pegá-lo e quero porque decidi entregar minha vida.
– O quê! Entregar a vida?
– Morrer, ingerir o veneno e morrer, senhora.
– Cruzes! Que brincadeira mais besta! Depois de velho virou piadista? Não fale em morrer, faz lembrar meu filho que a ditadura assassinou.

A conversa cairia no assunto do filho. Se aparecia um caso de morte na conversa lá vinha com o papo. Cheirava a provocação, sabe que o vizinho foi sargento na época da ditadura. Sempre pronta pra disparar indireta e provocação.

Ah, não tem como evitar a conversa e não tem como arrumar a desculpa da morte. Deixa pra lá.

Algum tempo a senhora abre a porta. Ele rapidamente sai num gesto de motivo.

– Ah, olá, senhor. Bom dia!
– Bom dia, dona Nice. Indo na padaria?
– Ah, não. Levantei pra visitar uma senhorinha doente que mora ao redor da praça.
– Coitadinha... O que ela tem?
– Diabete. E a família pede qualquer ajuda, não tem tempo pra ficar com a senhorinha o dia inteiro.
– É complicado...
– É sim. Ah, desculpa, tive que emprestar o seu veneno pra dona Carminha. Encontrou uma baita ratazana dentro de casa. Cruzes, que horror, arrepia.
– Não tem problema, dona Nice. Não escutei mais o barulho à noite.
– Que bom. Eu também não. Tenho que ir, adeus.
– Adeus, senhora.

Vê a mulher abrir o portãozinho e ganhar à calçada. Entra pra dentro e senta na cama. O objeto que usaria para morrer está longe. Bem, nem muito longe. Seis casas antes da dele. O ruim é que não tem amizade e papo com a pessoa. O máximo que tem é uma prosa curta e rápida. O que quer encontra com ela, é só caminhar até lá, bater palmas e pedir o veneno. Simples, sem nenhuma dificuldade.


Troca de camisa, uma branca que comprou um mês atrás. Sai. De encontro outra vizinha chegando. Essa mais nova, negra, trabalha no período noturno. Hoje veio tarde do serviço, ele não liga, tem seus problemas. Cumprimenta e vai pra rua.

Anda logo, perde tempo. Até porque morreria e deseja o mais rápido que puder, com sessenta e seis anos havia esperado muita coisa na vida, agora pra morte, quer um ato rápido e sem dor.

Dona Carminha estranha parado no portão. O dia mal tinha começado e é obrigada a atendê-lo.
– Pois não?
– Bom dia, dona Carminha. A dona Nice informou que a senhora pegou emprestado um veneno de rato.
– Foi sim, dias atrás. É do senhor, não é?
– Sim. Vim até aqui pra que me devolva, necessito urgentemente.
– Ah, não está mais comigo... Desculpa. Minha sobrinha que mora quatro quadras daqui levou. O sem vergonha do marido não ajuda em nada à pobrezinha, é um peste, um vagabundo!
– Ah...
– Posso ligar e pedir para que traga de volta.
– Sem problemas, dona Carminha. Não é preciso tomar o tempo da sua sobrinha. Obrigado, tenha um excelente dia.
– O senhor também. Obrigada.

Por dentro está furo da vida. Maldita hora que emprestou o negocio pra outra pessoa. Agora nem morrer tem o direito. Adiar a morte por culpa dos outros. Ah, mas no mercado com certeza teria sucesso.

Não saia sem a carteira e segue para o mercado que não é longe. Que tolice ter feito o que fez, era só retornar no mercado e pedir um novo veneno pra ratos. Ai terá sua morte em breve.
– Ah, por favor. Gostaria do veneno de rato outra vez.
– Lamento, senhor. Não sei que há no bairro. Parece que surgiu uma epidemia de roedores e nisso acabou meu estoque. Estou preocupado, o senhor é a décima pessoa a fazer pedido.
– Não há mais?
– Exato. Com a epidemia, veio gente procurar o produto. Estou perdido. Terei que fazer uma remessa maior.
– Uma pena...
– O senhor quer que reserve?
– Não, não. Até lá, eu já resolvi o meu problema. Obrigado. Até.
– De nada. Até.

Será que morrer é carregado de dificuldades? No caso dele parece que sim.
Volta frustrado para o quartinho, pensa no que o dono do mercado falou da epidemia de ratos. Dá nenhuma importância para o caso.
– Quero morrer, será que é difícil? Tudo precisa ser difícil na vida, até pra morrer?
Seu pensamento foge pra boca. O velho sargento decepcionado.

Ao voltar, deita na cama de barriga pra cima a olhar o teto. Do lado de fora ouve a algazarra das crianças, a martelada há distancia do pedreiro, o som de automóvel gritando música sertaneja, barulho, distante e próximo. Da rua a voz escandalosa da mulher, dá bronca em alguém, talvez pra alguma criança, a voz some aos poucos. Não o deixam pensar, pensar na sua vontade. Imagina levar um tiro de assalto, direto no peito, pra que não haja socorro. Imagina a cena, ele desafiando o marginal, provocando, desejando que tenha ação e com sorte, consegue. O marginal nervoso dispara, com seu revolver e o ex-sargento é atingido e que não há como salvá-lo, ambulâncias, resgate, nada. Cairia com o riso aberto, contente e morto.

Lança um sorriso bobo no ar, em câmera lenta o admira próprio caído baleado, sangrando, sem gemer, sem estar assustado e surpreso.
Suspira alto, espreguiça, há tantas maneiras, jeitos, artimanhas para morrer. Tinha hora, dias, semanas e meses para concretizar a sua vontade.
– Quero breve. Pra ontem, se for pedir muito.
Pensar no veneno que era dele o fez entristecer. Velho de guerra azarado.

No vacilo, cochila. Desperta no horário do almoço. Levanta bravo, pois perdeu um tempinho de pensar no plano de morte. Droga! Não devia vacilar, não devia ser vencido pelo cochilo. Segue para o banheiro pra tirar do rosto a cara de sono, retorna e liga o rádio. “Notícias trazem um grave problema nos quatro bairros da cidade. Uma epidemia de ratos deixa alarmada a população. Alguns supermercados alegam que os estoques de veneno e ratoeiras acabaram e não confirmam o prazo correto para reposição.” “O departamento básico de saúde avisa do perigo que o roedor traz nas pessoas. Alerta todos para a vigília contra essa peste maligna.”
Desliga o rádio. Tem fome. Não gosta de perder tempo. Precisa comer.

Dura meia hora de preparo para o almoço. Com o prato senta na cama. Come a contragosto, mas tem fome. Pensa que dará a última garfada no arroz e feijão e na mistura, um bife bem grande, depois não prevê o que virá.
Talvez esteja vivo amanhã e depois de amanhã. Quem sabe? Ninguém descobre o dia de amanhã, só o hoje. E o presente é cruel, ironicamente não o permite levar a sério o seu desejo. Se fosse tão fácil como pensa...

Passa à tarde dentro do quartinho. Não arquiteta nada, relaxa com outras coisas, pensamentos velhos, lembranças perdidas, a ditadura e a família. Família composta da esposa e dele. Não tiveram filhos, sobrinhos tinham aos montes. Filhos não. Casal azarado como dizia para os cinco irmãos homens, todos com filhos abençoados de saúde, chutando bolas de futebol, transformando em novos soldados... Não! Os sobrinhos abominam o militarismo, rebeldes, afeminados, estudantes anarquistas e esquerdistas, amantes de Marx, putinhas de Proudhon. Era a esposa e o ex-sargento. Muitos anos de convívio e matrimônio. Ótimos anos de felicidade.

– De amanhã não passa.
Diz pra si mesmo. Tentando buscar alguma esperança perdida no fundo do poço. Se não pode morrer de veneno de rato, há tantas formas de entregar a vida.
– De amanhã não passa.
Deita, dispara um tímido sorriso. De olhos fechados desenha várias imagens. Uma delas a esposa falecida, bonita na juventude e o próprio bonitão dentro da farda, jovem, esbanjando energia. Imagens que sempre o agradaram, que convivem há anos como companhia.

– De amanhã não passa. Encontrarei minha hora...

...


Três semanas passam e nada de concluir o objetivo.
A crise de epidemia espalhou pela cidade e casos de doenças causadas pela praga surgiram. Principalmente nas crianças. Nos supermercados há uma extensa disputa dos clientes na busca de venenos. O que vem gerando disputas violentas de agressões por falta do produto. Em alguns supermercados de grande porte é gerado senhas com horários marcados para que se consiga a compra da mercadoria.

O ex-sargento assistiu e ainda assiste o caos da epidemia. Os vizinhos reclamaram da quantidade de roedores. Por falta de outra solução, resolveram o problema a paulada. Na calçada, loteada de roedores mortos. São grandes, enormes e pequenos, expostos a luz do sol.

Adiaram a morte. Por mais que quisesse, adiaram a morte. A vida continuava, mesmo com a praga na cidade. Ouviu das conversas dos vizinhos que uma menina de doze anos chegara a óbito e que um senhor estava quase a beira disso também. Sentiu inveja, pelo menos sendo de doença o adoentado morreria.
Acabou deixando de lado o plano. Seguiu a vida, calado no seu cantinho sendo visitado pelos roedores. Não ligava, permitia que fizessem a festa no quartinho. Quando todos estavam apavorados e lutando, o ex-sargento mal se importava com a presença dos bichinhos. Eram três ou dois não sabia o certo a quantidade, mas estavam dentro, criando morada.
Sentia o cheiro de urina, forte, prejudicial, que o lerdeava, tonto, de mal-estar. Ficava horas deitado e dormindo, acordava desorientado com o cheiro cada vez insuportável. Chamara a atenção de dona Nice.

– O que há? Esse cheiro forte é de rato?
Eram três dias, nem notara a lerdeza do corpo e a fraqueza. Teve que abrir bem os olhos pra fixar o rosto da mulher e entender o que ela dizia.
– Está bem? Parece-me esquisito. – Ela pergunta.
– Tudo bem. Não é nada. – Responde.
– Verifique, senhor. Pode ser urina de rato. Essas coisinhas nojentas estão por toda parte.
– Eu farei, dona Nice. Por favor, me dê licença, preciso descansar.
Sem ouvir o adeus tranca a porta e com dificuldade cambaleia para a cama. Desaba, como um pesado corpo derrotado.

Passam horas, tem impressão de ouvir ruídos. Algo se move, barulhinhos fininhos. Sua cabeça agitada, os olhos doloridos e as lágrimas que brotam teimosas. Sem concentração não distingue o que está acontecendo.

Perdido, vira o rosto para o lado. Os olhos uma cortina de vertigem, no chão há vultos, pequeninos, que andam pra lá e pra cá. São ligeiros e agitados. São três ou talvez dois. A cabeça uma confusão. Está doente o velho soldado...

– A morte virá me abraçar?
Calado, olha o teto. Tão desorientado de si...
...


Não compreende, porém ouve vozes. Vozes femininas. Uma delas tem a quase certeza que reconhece. Não compreende a conversa é um cochicho inaudível, sussurros baixinhos e não entende o do por que de estar ali. Não sente o corpo, tenta se mexer, mas alguém impede, sente uma mão fria tocar o braço e esforça pra abrir os olhos. Inútil. Escuta ruídos, bips descontrolados, passos, passos apressados e vozes. Na correria, o braço picado, quis gritar, não sai nada, tenta abrir os olhos, é inútil. A noção do tempo perdida. Parece preso, preso numa prisão invisível, onde há gente e não compreendia quem era.

Dessas vozes umas delas conversa diretamente, toca o rosto, arruma o cabelo, troca às roupas todos os dias, mas quem seria? Uma conhecida?
Semanas atrás desejava morrer, por um motivo que não conseguiria explicar, quis se entregar a morte. Sua vontade foi perdida, ao menos entende que não está morto. Pra qual lugar viera, também não sabe.
As vozes ainda cochicham, estão calmas, sente a aproximação de alguém, sente o calor da pessoa, ela sussurra e se afasta. Não está morto, tem total certeza. Quer abrir os olhos, mas é inútil.


É um novo dia e ele sabe. Percebe o vulto passando, um ruído de algo correndo e um clarão a preencher. O vulto passa, ouve o andar, é mulher pelo som do sapato, som de salto a bater no chão, forte e barulhento. Depois, o rangido desafinado de uma porta sendo fechada.
Não demora muito e entra alguém. Outra figura feminina, aproxima do seu rosto, lhe toca, a mesma de todos os dias, conversa com ele, chama o seu nome e não lembra quem seria ela. É hora de abrir os olhos sargento.

A pessoa pega na mão, sussurra palavras que não distingue, aperta forte, como se quisesse puxá-lo, quisesse buscá-lo do buraco, é um aperto de segurança, de que estará seguro pra voltar, que não precisa se preocupar, firme e confiante.
O puxa de volta, segura de si, protetora, é hora de voltar ao mundo general.

Aperta bem forte, quer segurança, firmeza, ter certeza de que não soltará sua mão. E assim aos poucos abre os olhos...
No começo vulto embasado, desconhecido. Custa a clarear, a endireitar as imagens e a pessoa o observando. A claridade é dolorida, chocam os olhos, aos poucos se acostuma, distinguindo as coisas, os objetos e a pessoa ali que ainda não largou dele. O som começa a melhorar, melhora aos poucos. Escuta vozes, passos sendo dados e maquinários agindo ordenadamente.
– Graças que acordou, graças! – Diz a pessoa feliz com sua volta.
Pois agora sabe quem é a pessoa. É nada mais nada menos do que a própria vizinha dona Nice.
– Avisarei a enfermeira que o senhor acordou. – Ela avisa.

Se solta, corre apressada a procura da enfermeira. E não, o ex-sargento não está morto. Talvez o detalhe o deixa menos contente.

A vizinha volta tão logo quando foi.
– Prontinho, ela virá em breve. O senhor, como está se sentindo?
O ex-sargento ignora a pergunta da mulher lançando sua própria pergunta.
– Por gentileza, dona Nice... O que sucedeu comigo?
– Ah, a gente o encontrou desmaiado e febril na cama.
– A gente quem?
– Eu e a Mônica, a vizinha de quarto. Pedimos pra arrombar a porta, vimos dois ratos saindo de dentro.
– E me trouxeram aqui? É o hospital?
– Sim, é o hospital. Sete dias internado.
– E a senhora tomou seu tempo para ficar comigo?
– Ah, mas o senhor não tem parentes próximos, então fui responsável de ficar cuidando e visitando-o.
– Entendo.
Abre uma cara de desanimo que a mulher percebe.
– Está sentindo dor? Incomodo?
– Nada. Acostumando com a luz e voltando a escutar as coisas normalmente.
A cara com a mesma expressão. Agora pintada de derrota.
– Sabe dona Nice. Às vezes desejamos aquilo que não está preparado na hora que queremos. Certamente o que desejamos virá, mas não no momento que preparamos. É um grande mistério, não é verdade?
– Ah, com certeza. Desculpa, não entendi onde se encaixa o assunto.
– Não é nada. Apenas uma divagação por alto.
– Ah, entendi. Fique tranquilo, a enfermeira vem vindo.
– Tudo bem...
E vira o rosto para o lado tentando buscar respostas que não viria na sua mente.

(Rod.Arcadia)

Nota: * Trecho da música Fio de Cabelo de Chitãozinho & Xororó.