quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Seu Nonô










Eram misteriosos os olhos. Era fascinante a mistura calma que compunha seu ser.
Seu Nonô, apelido ganhado quando mocinho, agora um velho, marcado de feridas, de sonhos sonhados e misticamente acalentados.
Seu Nonô, um negro, vindo de longe, apareceu na vila de um lugar de não sei onde. Instalou-se, fez a própria casinha. Não trouxe gente, nem mulher nem filhos, trouxe tralhas, panelas e o coração pra dizer que isso basta. Era carpinteiro, vivia no lar a descascar madeiras e a lixar, dando trato aos móveis da vizinhança, colocava novinho em folha, sem nenhum prejuízo, pra deixar clientela alegre e confiante.
Devoto católico, levantava todas as manhãs de domingo a ir à missa, de vez em quanto ia aos sábados, missa das sete da noite, quando havia vontade, ficava mais tarde pra ajudar os fiéis e o padre, que morava fora da vila e tinha automóvel despencado e despenado. E se não carecia vontade, lá ia dar as mãos para a benção do padre e saía às pressas. E de lá ficava, sequer víamos o rosto dele, porque víamos na janela, a olhar gente na rua, que por cima não era movimentada, vila vazia, quase fantasma. Movimentada nos dias de festa, festa na vila somente de igreja, de resto não encontraria. E morríamos de tédio, desejando um sonhar de meninos a voar dali, pra conhecer se o outro lado à vida era mais gostosa de viver, fazer do homem um sonho sonhado.
Mas Seu Nonô nem curioso ficava de conhecer outros lugares, sequer comentava, se ouvia tal assunto, criava carinha de desgosto e desaprovação. Possuía seus contras e não reclamava de quem almejava tal desejo.
E quando carícia de vontade construía carros de madeira para os meninos, bonequinhos e cavalinhos. Era mais nas temporadas dos dias das crianças e o natal. No Cosme e Damião enchia a criançada de doces e balas.
Um dia perguntei pra mamãe, se um dia reparou nos olhos dele.
– Já sim. Olhos que procuram alguém nas estrelas, né?
Não imaginei como imaginou mamãe, mas continha algo de procura, de busca, de misteriosos vazios perdidos. Desenhavam segredos trancados no interior, talvez o sufocasse, talvez o incômodo acostumasse ou que acostumou ao incômodo. Se havia, nunca deu mostra, totalmente na dele de silêncio outonal.


Até que um dia o Seu Nonô adoeceu.
Vieram às mulheres da vila, mamãe também foi. Era febre danada que o homem contraiu, tremores e alucinações. Chamaram o doutor da cidade mais próxima, esse de tão bêbado, não resolveu, o único que o povo recorria e era difícil porque vivia o dia inteiro enchendo a cara. A solução seria chamar o doutor da capital, só que levaria três dias de viagem e até lá o Seu Nonô poderia ter batido as botas.


Resolveram que a melhor solução era rezar, ajuntou o pessoal na intensão de que melhorasse e voltasse a ficar bem. Convocaram velhas rezadeiras, daquelas que carregam enormes rosários no pescoço, que oram pra tudo, seja o que for. E nada, nada ajudou, continuava na mesma situação. Alguém mencionou uma missa das sete em plena sexta-feira, de que nesse dia era melhor para as almas. Não deram bola pra assuntos espirituais e a missa sim, portanto que fosse feita no domingo como de costume.


E nada de melhorar, parecia que se entregou sem descobrir a causa da enfermidade. Davam como morte certa, que preparassem o caixão e as velas para o velório. Aceitaram uma última reza, um terço e se não melhorasse levaria pra capital e o deixasse num hospital para algum médico solucionar a cura.


Estava toda vila na casa do Seu Nonô rezando e cantando hinos de adoração, noite de quinta feira, beirando as vinte e horas. Na verdade, foram às mulheres que ficaram dentro, quase todas. A casa não comportava tanta gente e os homens é que ficaram do lado de fora junto com o restante das mulheres e as crianças de vigília, caso algum perigo aparecesse na hora.


Foi nesse período que escutamos o som de cavalo correndo, em forte galopada, muito apressado, nervosamente chegando no local.
E assim presenciamos, ela chegar, uma moça muito jovem e muito bonita, montada num negro corcel. Parou de frente a casa. Não pronunciou palavra nenhuma. Saltou do cavalo e caminhou pra dentro. Pra mim era uma deusa, uma rainha sem igual, de grandiosa beleza, um anjo que pousou na Terra.
Pra surpresa dos presentes chegou-se perto do doente, abaixou a cabeça e falou: “Estou aqui. Fique bem, não vá. Nosso encontro, você sabe, não tardará a chegar.” Beijou a testa e sem falar com ninguém saiu e montando no corcel descarregou a galopar pra bem longe.


No dia seguinte o milagre aconteceu, Seu Nonô curado, falando bem e com muita vontade de trabalhar. Antes, com todo mundo preocupado foram na outra cidade trazer o médico bêbado pra examinar. Não encontrou nada, estava bem de saúde, febre não havia. Tudo, tudo certo.
Milagre! Diziam alguns. Foi à moça misteriosa! Disseram outros. Ficaram nesse jogo de milagres e moça misteriosa. Discutindo quem curou o Seu Nonô.
A moça seria alguém próxima que ele negaria se houvesse ligação.
Certo dia por distração me revelou que quando jovem enamorava uma bela moça branca de nome Isabel, que eram felizes e apaixonados. Estavam prontos pra casar, infelizmente os pais da moça não concordavam e o pai sem piedade assassinou a filha na frente do Seu Nonô. Morrera nos braços dele a coitadinha. Por culpa da tragédia começou a vagar pelo mundo completamente desorientado, só encontrou a paz sendo carpinteiro, não buscando um novo amor. Pra ele que dissera que na idade que está o amor tomou asas e voou. Felicidade tamanha com a solidão completou.
Mas... E os olhos que procuram algo nas estrelas? Eles estão lá, vivos, iluminados e talvez chegue um dia que não precisarão olhar para o alto e caso o dia chegar é que Seu Nonô estará lá juntinho delas.


(Rod.Arcadia)






Nenhum comentário:

Postar um comentário