segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Antes da Jornada






Antes da Jornada
Sempre haverá Esperança...”.

1

Desperta com o chamado do relógio. Atrapalhado levanta tropeçando, meio zonzo, envolvido no último sonho. Entende que está no mundo real e possui hora marcada. Antes recolhe papeis do chão, revistas de conteúdo adulto e bota na mesinha. O relógio ainda chama, mas foi silenciando aos poucos. Pega a toalha e entra no banheiro.

Não enrola muito. Sai com a toalha enrolada no corpo molhado. Mexe e revira o armário até descobrir roupa adequada pra vestir. Do cabide puxa camisa de linho azul e calça preta, retira as meias que são pretas também. Veste rápido, ajeita aqui e acolá, coloca o sapato. No espelho verifica se há alguma coisa errada. Tudo certinho e arrumado.

Na cozinha esquenta o café, bebe morno numa colada só. A hora corre e detesta atrasos por isso se apressa. Pega a mochila de viagem de cor azul celestial. Abre, dá uma boa fiscalizada nos bolsos, nada faltando, checagem completa. Pronto, sem tempo a perder.
Coloca o relógio no pulso e a mochila nas costas. Sente o peso, pega uma edição das revistas de conteúdo adulto e a folhe-a na página marcada com caneta vermelha. Lê procurando descobrir algo de errado.

Senti-me realizada com aquele corpo me amando. Os lábios contra os meus, deixando-me excitada, de prazer, não sei o quanto me segurarei pra explodir de gozo e felicidade...”

Coloca a revista na mesinha. Pega o molho de chaves, olha eletricamente a casa e vai ao destino marcado.

Dá sinal para o táxi que anda lentamente na avenida.
Por favor, nesse endereço, tudo bem?
O taxista coloca os óculos para ler.
Prontinho, chefia. Chegaremos num instante.
Encosta-se à poltrona macia do veículo, fechando os olhos nem percebe a velocidade que adquira o táxi.


Semanas atrás recebeu do correio uma novidade um tanto desconfiada. No bilhete avisava que teria sido contemplado por um sorteio. Nunca participou de promoções, seja qual fosse à causa. Primeiramente pensou que tivessem se encanado e trocado os nomes dos vizinhos pelo dele. Os vizinhos entravam nas jogadas promocionais de prêmios como chocolates, marcas de bebidas, produtos de limpezas e por aí vai. Perguntou e deram a mesma resposta:
Não. Absolutamente não participei.
Ainda na dúvida e desconfiado ligou no endereço e escutou com maior clareza.
Absolutamente, senhor. Nós não trocamos o nome e o endereço, é um dos contemplados. Espero que esteja feliz com a ótima notícia.
Sem pensar deixou-se acostumar. Precisava, já que era morador solitário há anos. Entusiasmado e ansioso relia letra por letra e com outra mão segurava o objeto que recebeu.

É um dos sorteados. Compareça na data marcada no endereço indicado. Caso de dúvidas consulte-nos no horário comercial. Ass: A Diretoria.”



2



Três dias antes tomou a liberdade de visitar o irmão e mostrar a novidade. Achou melhor assim, o irmão mais velho é daquelas pessoas céticas chatas, com argumentos teóricos e pra não se chatear quis dar a notícia pessoalmente.
O irmão mais velho mora sozinho, separado há uma década, a ex-esposa e os dois filhos vivem no Paraná na casa de parentes do lado matriarcal. Só vê os filhos nos finais de ano e num curto período de hora.
Quando aparece, surge com planos pra caminhadas. Aceitando a contragosto o irmão embarga não tirando o perfil cético. A maioria dos passeios são caminhadas, onde debate assuntos, problemas, situações e amarguras. No fim, relaxam tomando chope.

Verdade isso? – Perguntou o irmão surpreso mostrando o bilhete.
Sim. Eu confirmei com a empresa e disseram que está tudo certo.
Oh, merda... Vem cá mano, um abraço de parabéns!
Envergonhado é envolvido no abraço apertado e o beijo no rosto.
Puxa! Estou muito feliz, de verdade.
Ah, que isso... Não é nada demais.
Nada demais? Tá doido? Quem não queria o teu lugar?
Imagino que muitos.
Pois é, ganhou oportunidade de ouro!
Ah, sem exageros, por favor.
Está bem, está bem. Sem exageros.
Assim é melhor.
E as coisas como ficam?
Do mesmo jeito. Não me planejei. A primeira coisa que fiz foi vir pra te contar.
Ah... Tem feito àquelas baboseiras?
Essas baboseiras estão ajudando, não posso sobreviver com o pequeno salário de aposentado.
Existem milhares de atividades pra tu fazer e caiu justo nessa? Não acredito sendo meu irmão e inteligente se perca nessas besteiras sem conteúdo.
É meu ganha-pão.
O irmão gargalhou e o deixou sem chão. Não sabia onde enfiar a cara aos poucos a gargalhada foi diminuindo.
Ah, desculpa, desculpa. Não deu pra segurar.
Ok. Estou acostumado com seus exageros.
Ah, que isso, minha chatice vem em primeiro lugar.
Verdade. – Soltou riso concordando.
Eu não aprovo o que anda fazendo. Mas, fazer o que se há monte de gente que acha bom.
Isso é certo. E o lado feminino vem aumentando muito nos últimos meses.
Oh, mais essa agora. Pobres fracos de cabeça!
Ah, esquenta não.
Que dia acontece a novidade?
Daqui á três dias. Dois dias pra resolver as coisas.
Será bom, desde que Elisa morreu vive trancado dentro de casa. Só vem pra cá raríssimas vezes e será ótimo ambiente novo pra vida.
Sim, tem razão.
Dê um abraço de novo, cara!
E assim terminou a visita com comemoração na choperia e voltou imaginando pensamentos positivos e sonhou momentos ótimos nesse dia.

Quando o taxista para está distraído divagando a psicologia humana. Fazia divagações, recordando os detalhes. Variados casos, de pessoas rotineiras trazendo o eterno confronto do “Eu” ou o “Porque”, cada um carrega o próprio vazio. São marcados pelas dúvidas, questões e apontamentos. Examinava o comportamento, a atitude, a ação. Longe de ser chato como o irmão, as opiniões guardava para si. Conversar com consigo é o ato de que nada vai bem. Absorvia a psicologia problemática dos cidadãos, só compreendia as chagas tarde demais. Pra tudo se resolvia, resolvia com distrações. A humanidade é acariciada com distrações. Reality, apresentações televisivas, câmeras, consumo exagerado, amores artificiais. Talvez tivesse parcela de culpa ou não. Possui cuidado e às vezes alguém foge do controle. Está lotado de loucos no mundo de distrações. É o ganha-pão. E sendo o fato engraçado, era mais uma ironia triste e desafinada.

Aqui, chefia. Sem atrasos. – Diz o taxista.
Do vidro fica espantado de ver a construção de cor dourada banhada na luz do sol.
Ah, pegue e fique com o troco. – Diz ao entregar o dinheiro ao taxista.
Obrigado pela gentileza.
Não há de que.
Mas antes de sair o taxista o para.
Posso lhe fazer uma pergunta? Se não for atrapalhar.
Ah, que isso, pergunte. Esteja à vontade.
Tem certeza que tudo é real? Existe o que estão dizendo?
Meu amigo, eu apenas sou um dos felizardos vim descobrir com os próprios olhos. Adeus e boa sorte.
Até, chefia.
Sente o vento na hora que o automóvel vai embora. Ajeita a mochila nas costas, é monumental a construção a sua frente, de enorme escadaria. Do alto fotografou com o olhar pássaros a enfeitar a sombra do astro-rei, desfilavam no ar sem nuvens, o céu enfeitado de poesia.
Pessoas subiam e desciam os degraus. Não enxerga nenhuma delas carregando mala ou mochila. Verifica o relógio, não está atrasado, tem tempo pra estudar o pessoal, contemplar o comportamento humano.




3


No dia após a visita ao irmão foi ter conversa com seu chefe. E se dirigiu ao prédio.
O felicitaram lembrando que era muito conhecido e comentado. Aparecia raramente, no termino de cada mês para descobrir os resultados do trabalho. Carrega dúvidas com a quantidade de sucesso que vem recebendo, não imaginava o boom tão grande.

Foi com alegria que o chefe o recebeu. Abraço caloroso e xícara de café que não foi recusado. Recebido o patrão quis saber o motivo da visita.
Ele puxou do bolso e estendeu ao patrão que pegou com ar desconfiado.
Leia. – Disse.
O homem de estatura mediana examinou com cuidado, revirou com a intenção de desvendar qualquer erro, esforçou e quando se deu por vencido o entregou de volta.
Serio? – Perguntou com vestígio de duvida.
Com certeza. Confirmaram-me.
Então...
É. Vim pra avisar. Não se preocupe, outra pessoa cuidará do trabalho.
Quem?
A dona Nina.
Ah, que senhora gente fina. Boa escolha, gosto demais dela.
Eu também. Faz bem direitinho, uma belezinha.
Verdade. E puxa! Contente e triste ao mesmo tempo. Dê uma olhada nisso, olhe o tanto de cartas que recebemos depois do último trabalho.
O homem passa um enorme volume de cartas que precisou ser colocada de volta na mesa.
É um tremendo sucesso, meu caro. Sucesso garantido.
Leu alguns comentários por cima, eram muitos e todos elogiando. Sentiu estranho, culpado em ver tanta gente feliz, precursor das distrações e que existiam coisas bem piores.
Acredito que com a chegada de dona Nina o sucesso expandirá cada vez mais.
Ah, tomara que sua previsão não falhe.
A senhorinha é ótima. Não tem erro.
Voltaram ao café e no fim o chefe chamou os funcionários para avisar ao que deram parabéns e muitas sortes. Saiu do prédio carregado de orgulho e grandeza, a despedida o emocionou, arrancou da rotina de reparar nos atos das pessoas. Considerou bom por ter esquecido.

Sua última parada foi no cemitério. Era um cemitério distante do centro, o que precisou utilizar o serviço do táxi e fazia vinte dias que não trazia flores pra repor. Havia esquecido o detalhe, no caminho percebeu que era bobagem, já que não retornaria mais, portanto tinha razão de não trazer. Quando vinha carregava flores brancas, nos dias de finados trocava pelas amarelas e em algumas exceções substituía por roxas, o que não achava bonitas.
Dentro do cemitério a mania de reparar na situação humana era chamariz de informações. Prestava atenção, sentia aromas, medos, perturbações, revelações, segredos, traições, lamurias, saia meio baleado, absorvido, como estivesse drenando o corpo, sugando-o. Não se imaginava tão machucado quando visitava, saia carregando peso que misteriosamente não obteria maneiras de explicar.

No entanto, estava para a última visita, trazendo nada, nem tampouco poemas. Não possuía cacoetes pra versos e pouco ligava pra esse tipo de arte, mas tinha fascínio por quem se aventurava.

Ele a avistou de longe com a mão erguida acenando, reparou nas luvas brancas encobrindo os braços, o vestido azul-claro, o chapéu branco escondendo o escuro cabelo e os sapatinhos, pois os pés eram pequenos. Sentada na tumba com as pernas cruzadas o esperou chegar. Gente próxima não havia, o que os deixariam a vontade.
A tumba enfeitada com azulejos de pastilhas rosa e a cruz de prata suja de pó e sujeira e na placa de aço onde se lia: “Aqui jaz um grande amor.” E o vazo com restos de flores do mês retrasado.
Ela descruzou as pernas e suspirou. Os olhos verdes claros, a pele branquinha. Ajeitou o vestido e se acomodou direito. Ao vê-lo próximo abriu o sorriso de boas vindas.
Olá, Elisa.
Disse e encostou do lado. Timidamente procurou a mão dela que gentilmente o permitiu que encontrasse e a segurasse fraternamente.
Você por aqui hoje?
É verdade. Não é o meu dia de visitas. Tenho novidade.
Ah...
Fez ar de surpresa, não dava pra ver os olhos dele, pra encontrar algum rio de segredos.
E qual seria? Ela perguntou afinal.
Um momento.
Enfiou a mão no bolso e retirou o mesmo que outrora mostrou aos outros conhecidos.
Leia.
Fez o que pediu, leu as linhas detalhadamente, abrindo a boca de espanto. Terminado, perguntou:
É isso mesmo? É o que dizem no que acabei de ler?
É sim. Tudo é verdade nas letras.
Ah... Então irá pra...
Exato. E estou pra me despedir. É a minha última vez com você...
Agora de rosto virado ela pode ver os olhos e não encontrou nenhum rio de segredos. O lábio ainda tinha o forte batom avermelhado, lábio grosso e molhado.
Leva-me contigo. Pediu para ele.
Soltou a mão dela e levou a sua a encostar-se à tumba.
Sabe que será impossível.
Sim. Falei por falar.
O silencio dominou ambos por minutos. Ninguém olhou um para o outro, o vento leve refrescava, folhas das árvores balançavam no ar e pombas rastejavam as patinhas no chão de terra. Ele não tinha mais o que fazer ali, desde que ela morreu há mais de dezenove anos nunca deixou de visitá-la, de contar as boas novas, as chatices do irmão, do trabalho que começou logo após a morte dela. Ela reclama das visitas alegando que não conseguiria descansar, na verdade não desejava que a deixasse para sempre. Não ligava para reclamações, vinha disposto e cheio de vitalidade. Horas longas a conversarem, a falar das coisas da vida, das pessoas, sorrisos e comemorações. Dezenove anos nessa rotina, sem preguiça, sem perder a razão de estar ali.
Eu visitei a família do menor que disparou contra você. – Disse ao quebrar o silencio.
Serio? – Perguntou o encarando de surpresa.
Sim. Foi tão... Tão triste ver a família naquela condição. Não há como sentir raiva, ódio, alimentar vingança e desejar a morte. Não tiveram culpa, o menino também não, e por que desejaria mal? Eu sou lá um deus que possui o direito de punir outros como eu? De julgar e fazer regras do meu jeito? Penso que não.
Fico orgulhosa de ti, muito orgulhosa.
Em seguida voltou a falar.
Mas depois, depois não te verei mais...
Está na hora do seu descanso.
Sabe que minha implicância é falsa, jamais desejei que fosse embora.
Sim, sempre soube. As coisas mudaram, deram uma reviravolta que eu até no momento estou tentando me equilibrar.
Ela tomou as mãos dele, as luvas macias a tocarem a pele, os olhos espelhos coberto de brilho, estava bonito o chapéu na cabeça, o corpinho magro no vestido. Não ouvia a respiração da mulher, nem os suspiros, nem as mãos nervosas. Por dezenove anos, essa mulher chamada Elisa foi sua esposa e num destino sem previsão a levaram, o menor, a arma, à bala perfurando o peito, sem resistência, sem tempo de salvá-la e veio à perda e a vida desmoronou...
Depois da tragédia, recomeço, novos caminhos e outra visão das coisas. Hoje é reconhecido pelo seu trabalho, sabendo que o adoram nem desconfia quem seja, vivem criando teorias. Não encontraria a melhor hora para despedidas.
Eu o liberto de mim, lhe dou asas para a tua liberdade. Está livre para voar, passarinho meu. – beijou a testa. Beijo demorado, frio e amoroso.
Te levarei dentro do coração. – Disse ele firme.
Pois vá e saiba que estarei com você onde quer que esteja.
E sempre haverá esperança. Acredite, existirá a esperança.
Eu acredito nela.
A despedida termina com leve beijo, o último adeus simbolizado num simples beijo. Na frente dele a mulher desaparece dizendo...
Sempre haverá esperança...






4





Ao terminar os degraus da escada, Arfa de cansaço. Examina o pessoal subindo, todos com energia e com os rostos despreocupados, mostram-se acostumados com o exercício que praticam com bom ar agradável.
Toma folego e não entende como escalam tão bem. E olha que não é tabagista e beber é de vez em quanto. Apaga o mistério segue na entrada do enorme complexo.

De frente a estátua do deus Hermes banhado pela luz do sol oferece uma boa vinda aos que chegam. O deus mensageiro pintando o orgulho de protetor. Mesmo que ninguém dê atenção, tinha seu motivo de guardião.
Para adentrar, portas automáticas abrem na presença da pessoa e foi que aconteceu e ele desconfiado adentra.

Um extenso complexo se expõe, de brilho rico e milhares percorrem o piso branco. Assustado, um moço do interior com medo do novo mundo e da cidade grande. Há confusão de vozes de babel moderna que bagunça e confunde. Busca a direção, as pernas travam, esforça, apressar. Prossegue.
Do alto, arquiteturas penduradas no ar, telas filmam a movimentação, câmeras piscam sem parar, disparam flashes sem assustar, vozes eletrônicas anunciam a cada dez segundos. Avista um homem negro, alto, bem-vestido. Escandalosamente o crachá se destaca no peito. Postura tranquila, de gestos lentos e olhar de vigia.
Por favor, necessito de ajuda. – Diz para o homem.
Sim? Procura alguma coisa no complexo?
- Sim, sim. Espere.
Retira o cartão e o homem lê.
Humm. É dos privilegiados. Venha comigo, senhor.
O homem negro toma a dianteira coloca os braços pra trás caminha tranquilamente.

Ao chegar, o homem abre a porta de vidro e estendendo o braço fala:
Aqui, senhor. É melhor se apressar.
Obrigado.
Mais uma vez surpreso. Surpreso com a quantidade de gente, do enorme trem Maria Fumaça nos trilhos. Uma moça de gesto gentil se aproxima.
Pois, não?
Ah.
Mostra o cartão e o bilhete a moça examina calculadamente.
Me acompanhe, estamos quase na hora do embarque.
Leva-o para fila formada e o deixa dizendo que não demorará o embarque. Agradece, observa-a indo para outro lado.
As vozes eletrônicas anunciam informações a rodo, informações sem sentido, necessárias, nada causava pânico.
Na fila o falatório domina. Homens, mulheres, idosos e crianças distraem nas conversas do dia a dia, pra esquecer a espera. Na frente a mulher gorda sem malas, de sacola plástica recheada de revistas. Finalmente. Olha o relógio e a hora. Falta um minuto.
O calafrio percorre o corpo. Ansiedade? Talvez. No cartão e no bilhete de cor caramelo, título em letras douradas e o papel perfumado de perfume desconhecido: “É um dos sorteados no Aqualung Locomotive. Compareça na data marcada no endereço indicado. Caso de duvidas consulte-nos no horário comercial. Ass: A Diretoria.”

As notícias corriam soltas. Não havia quem não comentasse a viagem na Maria Fumaça modernizada do século XXI, capacidade para trezentos passageiros e o destino que não recusaria participar. Ninguém conhecia o destino que a máquina faria e desejavam serem privilegiados. Sorte que não recusou. Sim, teve duvida, foi quebrada brevemente. Fez despedidas, deu lugar no trabalho para uma senhorinha e recebeu a liberdade da ex-esposa. Liberdade simbólica.

Finalmente. Um homem vestido elegantemente se pronuncia.
Bom dia, senhoras e senhores. Bem-vindos ao Aqualung Locomotive. Creio que cada um recebeu nas respectivas residências o bilhete e o cartão. O cartão é uma espécie de passagem que acusa na lista dos sorteados. Espero que não tenham esquecido ou não poderemos verificar a lista. Nós da diretoria agradecemos por acreditarem no nosso projeto, projeto de treze anos, desenvolvido com esforço, sonhos a realizar o que mais almejamos. Boa viagem, pois nada no mundo se comparará ao Aqualung Locomotive. Muito obrigado e adeus.

O homem parte tomando a direção da saída junto com dois homens de terno. Agitação, falatórios mais altos, isqueiro acesso, fumaça, cheiro de cigarro, alguém com sede, com frio na barriga, com pensamentos de que não prevê o que virá. Olhando pra fora da porta de vidro o complexo não parava de se movimentar. Pra cima e pra baixo, gente despreocupada, considera o que vem pra começar não era do interesse deles. Sem curiosos, sem parentes a vida continua como um dia qualquer. O primeiro apito da Maria Fumaça anuncia seu chamado. O calafrio aumenta mais.
A mulher gorda vira-se e sorri. Repara no medalhão de prata modelando o peito loiro. A fila dá os dois primeiros passos.

O segundo apito surge. Após verificação do nome é acomodado no vagão, não existia a coisa mais bela que o Aqualung Locomotive. Poltronas confortáveis, o corredor perdia de vista, carpete avermelhado enfeita o chão, janelas de cortinas japonesas, encanto e tecnologia no instrumento de locomoção.

Acomoda-se na poltrona do corredor e a mulher gorda na poltrona da janela. Tanto faz a mulher ali, quando acabasse não a veria mais, mas tem curiosidade de descobrir o que ela pretendia com a viagem. O que buscava? O que procurava? Corria atrás de algum objetivo? Não via nela do que uma vida normal, sem muita coisa importante. Não trouxe consigo bagagem somente sacola plástica com revistas.

Era tortura aguardar o acomodamento de todos. São trezentos passageiros, tarefa cansativa de realizar, felizmente nada escapou do controle e os sorteados na poltrona sem parcela de reclamação.

O terceiro apito. Desta vez forte, como grito a distancia. O motor silencioso mal se ouvia, o mar de falatórios. Hora errada de lembrar o passado. A mulher puxa conversa.
Ruim ficarmos em silencio quando se há conversas. – Diz ela.
A voz não é desagradável, o que deixa mais tranquilo.
Acho que não. Quebra o desconforto, não é mesmo?
Completamente. Bom, se não houver conversa, ao menos tive a inteligência de trazer as revistas. Passatempo gostoso e saudável.
Sente medo ao observar a cara de safadeza dela.
Retira a revista da sacolinha e tamanho foi o susto ao saber qual revista que a mulher trazia.
Na capa uma jovem modelo de cabelo claro deixava a mostra o seu volumoso busto, de boca aberta e olhar de sedução.
Reconhece a revista, igual ao que estava na casa dele.
Segura o susto, engole a surpresa. A mulher não dá atenção às matérias, abre a revista na parte mais interessante, a sessão de contos.
Conhece? – Pergunta mostrando a página.
Não, não.
Responde gaguejando. Se respondesse que conhecia abriria as portas de segredos e seria motivo pra liberar perguntas.
Não há maneira ótima de ler isso. Adoro, me excita e o cara é muito bom. Entende direitinho, amo as histórias dele.
Verdade? É interessante as histórias da revista?
Bota interessante nisso. Meu sonho é conhecê-lo e até fazer uma coisa bem gostosa com ele. – Ri. – Agora é tarde, estou aqui, mas levo-as comigo pra sempre.
Fica sem jeito ao reparar a maneira da mulher.
Leia o trecho: “Senti-me realizada com aquele corpo me amando. Os lábios batalhando contra os meus, deixando-me excitada, explodindo de prazer, não sei o quanto me seguraria pra explodir de gozo e felicidade...” Ai... Não é excitante...?
Percebo que sim.
Se o cara soubesse como faz sucesso com as mulheres...
Ele ri, se ajeita na poltrona, a Maria Fumaça abre o último apito de aviso.
Uma voz feminina começa a falar:
O Aqualung Locomotive está pronto pra começar a viagem. Estejam confortavelmente acomodados e ótima jornada. Obrigada.
As portas do vagão são fechadas e a Maria Fumaça lentamente começa a locomover. O silencio vence o falatório. A mulher entretida na revista de conteúdo adulto nem se dá conta de que é a escolhida a estar ali dentro, boa escolha para distração, arrepende de não ter feito o mesmo. De soslaio lê o nome do conto: “Aquele anjo de Carnaval.” Disfarçadamente abre sorriso, não havia mais segredos pra esconder a satisfação de sentar do lado da fã, de saber do sucesso garantido. Que dona Nina continue entretendo os leitores, os leitores querem distrações, boas ou más, não importam quais sejam. De boca fechada não contaria para a mulher quem ele é...
Alegre, reconhece mesmo sendo senhor de idade, homem muito famoso no mundo das distrações.




5



Ao despertar fica desorientado. No vagão, não há passageiros. A mulher gorda não está. A sacola com revistas de conteúdo adulto largada no chão e duas revistas abertas na poltrona. Não há passageiros, somente ele e objetos largados pra traz. As portas abertas e o Aqualung Locomotive com motor desligado. Reina silencio. Não recorda de nada, o que lembra é o aumento da velocidade, de ver a imagem da mulher sumir aos poucos e o clarão branco. Depois, depois não viu nada.
Desconfiado, vai para a saída do trem. Uma cidade abre-se, rica, iluminada e sedutora. Sua cidade, essa que é seu porto seguro, de grandiosas realizações, de conquistas e perdas. Sua cidade do passado ou do presente? O cheiro não está igual ao que sentia, havia mistério no cheiro. Não, não o cheiro da cidade que andou há anos, um cheiro novo ou antigo, não conseguia explicar.
Aos poucos, pessoas surgem acompanhadas, solitárias, com animais, contentes, apressadas, descontraídas.

Está de costas de vestido branco. O chapéu a embelezar o cabelo e o guarda-chuva a proteger do sol. Chega ao destino e o que busca alguns metros dele.
Elisa? – Chama.
Na primeira impressão o rosto dela se contrai de satisfação para se contrair de descontentamento.
Por que demorou? Estou horas esperando? – Reclama.
Desculpa. Tudo atrasou...
Faz o calar com a mão na boca dele.
Liga não bobo. Acabei de chegar. Vamos?
Ela entrega o braço para encaixar o dele e dá partida a caminhada.
Sempre haverá esperança...
Concordo. Tem toda razão. – Ele responde encarando o rosto fino e branquinho dela.
Tomam a direção pra desaparecerem no infinito da rotina da cidade. Não existiriam barreiras e tragédias e a jornada, essa não tem parada.

(Rod.Arcadia)




Nenhum comentário:

Postar um comentário