Antes
da Jornada
“Sempre
haverá Esperança...”.
1
Desperta com o chamado do relógio.
Atrapalhado levanta tropeçando, meio zonzo, envolvido no último
sonho. Entende que está no mundo real e possui hora marcada. Antes
recolhe papeis do chão, revistas de conteúdo adulto e bota na
mesinha. O relógio ainda chama, mas foi silenciando aos poucos. Pega
a toalha e entra no banheiro.
Não enrola muito. Sai com a toalha enrolada
no corpo molhado. Mexe e revira o armário até descobrir roupa
adequada pra vestir. Do cabide puxa camisa de linho azul e calça
preta, retira as meias que são pretas também. Veste rápido, ajeita
aqui e acolá, coloca o sapato. No
espelho verifica se há alguma coisa errada. Tudo certinho e
arrumado.
Na cozinha esquenta o café, bebe morno numa
colada só. A hora corre e detesta atrasos por isso se apressa. Pega
a mochila
de viagem de cor azul celestial. Abre, dá uma
boa fiscalizada nos bolsos,
nada faltando, checagem completa. Pronto, sem tempo a perder.
Coloca o relógio no pulso e a mochila nas
costas. Sente o peso, pega uma edição das revistas de conteúdo
adulto e a folhe-a na página marcada com caneta vermelha. Lê
procurando descobrir algo de errado.
“Senti-me realizada com aquele corpo me
amando. Os lábios contra os meus, deixando-me excitada, de prazer,
não sei o quanto me segurarei pra explodir de gozo e felicidade...”
Coloca a revista na mesinha. Pega o molho de
chaves, olha eletricamente a casa e vai ao destino marcado.
Dá sinal para o táxi que anda lentamente
na avenida.
– Por favor, nesse endereço, tudo bem?
O taxista coloca os óculos para ler.
–
Prontinho, chefia. Chegaremos num instante.
Encosta-se à poltrona macia do veículo,
fechando os olhos nem percebe a velocidade que adquira o táxi.
Semanas atrás recebeu do correio uma
novidade um tanto
desconfiada. No bilhete avisava que teria sido contemplado por um
sorteio. Nunca participou de promoções, seja qual fosse à causa.
Primeiramente pensou que tivessem se encanado e trocado os nomes dos
vizinhos pelo dele. Os vizinhos entravam nas jogadas promocionais de
prêmios como chocolates, marcas de bebidas, produtos de limpezas e
por aí vai. Perguntou e deram a mesma resposta:
– Não. Absolutamente não participei.
Ainda na dúvida e desconfiado ligou no
endereço e escutou com maior clareza.
– Absolutamente, senhor. Nós não
trocamos o nome e o endereço, é um dos contemplados. Espero que
esteja feliz com a ótima notícia.
Sem pensar deixou-se acostumar. Precisava,
já que era morador solitário há anos. Entusiasmado e ansioso relia
letra por letra e com outra mão segurava o objeto que recebeu.
“É um dos sorteados. Compareça na data
marcada no endereço indicado. Caso de dúvidas consulte-nos no
horário comercial. Ass: A Diretoria.”
2
Três dias antes tomou a liberdade de
visitar o irmão e mostrar a novidade. Achou melhor assim, o irmão
mais velho é daquelas pessoas céticas chatas, com argumentos
teóricos e pra não se chatear quis dar a notícia
pessoalmente.
O irmão mais velho mora sozinho, separado
há uma década, a ex-esposa e os dois filhos vivem no Paraná na
casa de parentes do lado matriarcal. Só vê os filhos nos finais de
ano e num curto período de hora.
Quando aparece, surge com planos pra
caminhadas. Aceitando a contragosto o irmão embarga não tirando o
perfil cético. A maioria dos passeios são caminhadas, onde debate
assuntos, problemas, situações e amarguras. No fim, relaxam tomando
chope.
–
Verdade isso? – Perguntou o irmão surpreso mostrando o
bilhete.
– Sim.
Eu confirmei com a empresa e disseram que está tudo certo.
– Oh, merda... Vem cá mano, um abraço
de parabéns!
Envergonhado é envolvido no abraço
apertado e o beijo no rosto.
– Puxa! Estou muito feliz, de verdade.
– Ah, que isso... Não é nada demais.
– Nada demais? Tá doido? Quem não
queria o teu lugar?
–
Imagino que muitos.
– Pois é, ganhou oportunidade de ouro!
– Ah,
sem exageros, por favor.
– Está
bem, está bem. Sem exageros.
–
Assim é melhor.
– E
as coisas como ficam?
– Do mesmo jeito. Não me planejei. A
primeira coisa que fiz foi vir pra te contar.
– Ah... Tem feito àquelas baboseiras?
– Essas baboseiras estão ajudando, não
posso sobreviver com o pequeno salário de aposentado.
– Existem milhares de atividades pra tu
fazer e caiu justo nessa? Não acredito sendo meu irmão e
inteligente se perca nessas besteiras sem conteúdo.
– É meu ganha-pão.
O irmão gargalhou e o deixou sem chão. Não
sabia onde enfiar a cara aos poucos a gargalhada foi diminuindo.
– Ah,
desculpa, desculpa. Não deu pra segurar.
– Ok.
Estou acostumado com seus exageros.
– Ah, que isso, minha chatice vem em
primeiro lugar.
– Verdade. – Soltou riso concordando.
– Eu não aprovo o que anda fazendo. Mas,
fazer o que se há monte de gente que acha bom.
– Isso
é certo. E o lado feminino vem aumentando muito nos últimos meses.
– Oh,
mais essa agora. Pobres fracos de cabeça!
– Ah,
esquenta não.
– Que
dia acontece a novidade?
– Daqui á três dias. Dois dias pra
resolver as coisas.
– Será bom, desde que Elisa morreu vive
trancado dentro de casa. Só vem pra cá raríssimas vezes e será
ótimo ambiente novo pra vida.
– Sim,
tem razão.
– Dê
um abraço de novo, cara!
E assim terminou a visita com comemoração
na choperia e voltou imaginando pensamentos positivos e sonhou
momentos ótimos nesse dia.
Quando o taxista para
está distraído divagando a psicologia humana. Fazia divagações,
recordando os detalhes. Variados casos, de pessoas rotineiras
trazendo o eterno confronto do “Eu” ou o “Porque”,
cada um carrega o próprio vazio. São marcados pelas dúvidas,
questões e apontamentos. Examinava o comportamento, a atitude, a
ação. Longe de ser chato como o irmão, as opiniões guardava para
si. Conversar com consigo é o ato de que nada vai bem. Absorvia a
psicologia problemática dos cidadãos, só compreendia as chagas
tarde demais. Pra tudo se resolvia, resolvia com distrações. A
humanidade é acariciada com distrações. Reality, apresentações
televisivas, câmeras, consumo exagerado, amores artificiais. Talvez
tivesse parcela de culpa ou não. Possui cuidado e às vezes alguém
foge do controle. Está lotado de loucos no mundo de distrações. É
o ganha-pão. E sendo o fato engraçado, era mais uma
ironia triste e desafinada.
–
Aqui, chefia. Sem atrasos. – Diz o taxista.
Do vidro fica espantado de ver a construção
de cor dourada banhada na
luz do sol.
– Ah, pegue e fique com o troco. – Diz
ao entregar o dinheiro ao taxista.
– Obrigado pela gentileza.
– Não
há de que.
Mas antes de sair o taxista o para.
–
Posso lhe fazer uma pergunta? Se não for atrapalhar.
– Ah, que isso, pergunte. Esteja à
vontade.
– Tem
certeza que tudo é real? Existe o que estão dizendo?
– Meu amigo, eu apenas sou um dos
felizardos vim descobrir com os próprios olhos. Adeus e boa sorte.
– Até,
chefia.
Sente o vento na hora que o automóvel vai
embora. Ajeita a mochila nas costas, é monumental a construção a
sua frente, de enorme escadaria. Do alto fotografou com o olhar
pássaros a enfeitar a sombra do astro-rei, desfilavam no ar sem
nuvens, o céu enfeitado de poesia.
Pessoas subiam e desciam os degraus. Não
enxerga nenhuma delas carregando mala ou mochila. Verifica o relógio,
não está atrasado, tem tempo pra estudar o pessoal, contemplar o
comportamento humano.
3
No dia após a visita ao irmão foi ter
conversa com seu chefe. E se dirigiu ao prédio.
O felicitaram lembrando que era muito
conhecido e comentado. Aparecia raramente, no termino de cada mês
para descobrir os resultados do trabalho. Carrega dúvidas com a
quantidade de sucesso que vem recebendo, não imaginava o boom tão
grande.
Foi com alegria que o chefe o recebeu.
Abraço caloroso e xícara
de café que não foi recusado. Recebido o patrão
quis saber o motivo da visita.
Ele puxou do bolso e estendeu ao patrão que
pegou com ar desconfiado.
–
Leia. – Disse.
O homem de estatura mediana examinou com
cuidado, revirou com a intenção de desvendar qualquer erro,
esforçou e quando se deu por vencido o entregou de volta.
– Serio? – Perguntou com vestígio de
duvida.
– Com certeza. Confirmaram-me.
– Então...
– É. Vim pra avisar. Não se preocupe,
outra pessoa cuidará do trabalho.
– Quem?
– A dona Nina.
– Ah,
que senhora gente fina. Boa escolha, gosto demais dela.
– Eu
também. Faz bem direitinho, uma belezinha.
– Verdade. E puxa! Contente e triste ao
mesmo tempo. Dê uma olhada nisso, olhe o tanto de cartas que
recebemos depois do último
trabalho.
O
homem passa um enorme volume de cartas que precisou ser colocada de
volta na mesa.
– É
um tremendo sucesso, meu caro. Sucesso garantido.
Leu alguns comentários por cima, eram
muitos e todos elogiando. Sentiu estranho, culpado em ver tanta gente
feliz, precursor das distrações e que existiam coisas bem piores.
– Acredito que com a chegada de dona Nina
o sucesso expandirá cada vez mais.
– Ah, tomara que sua previsão não
falhe.
– A
senhorinha é ótima. Não tem erro.
Voltaram ao
café e no fim o chefe chamou os funcionários para avisar ao que
deram parabéns e muitas sortes. Saiu do prédio carregado de orgulho
e grandeza, a despedida o emocionou, arrancou da rotina de reparar
nos atos das pessoas. Considerou bom por ter esquecido.
Sua última
parada foi no cemitério. Era um cemitério distante do centro, o que
precisou utilizar o serviço do táxi
e fazia vinte dias que não trazia flores pra repor. Havia esquecido
o detalhe, no caminho percebeu que era bobagem, já que não
retornaria mais, portanto tinha razão de não trazer. Quando vinha
carregava flores brancas, nos dias de finados trocava pelas amarelas
e em algumas exceções substituía por roxas, o que não achava
bonitas.
Dentro do cemitério a mania de reparar na
situação humana era chamariz de informações. Prestava atenção,
sentia aromas, medos, perturbações, revelações, segredos,
traições, lamurias, saia meio baleado, absorvido, como estivesse
drenando o corpo, sugando-o. Não se imaginava tão machucado quando
visitava, saia carregando peso que misteriosamente não obteria
maneiras de explicar.
No entanto, estava para a
última visita, trazendo
nada, nem tampouco poemas. Não possuía cacoetes pra versos e pouco
ligava pra esse tipo de arte, mas tinha fascínio por quem se
aventurava.
Ele a avistou de longe com a mão erguida
acenando, reparou nas luvas brancas encobrindo os braços, o vestido
azul-claro,
o chapéu branco escondendo o escuro cabelo e os sapatinhos, pois os
pés eram pequenos. Sentada na tumba com as pernas cruzadas o esperou
chegar. Gente próxima não havia, o que os deixariam a vontade.
A tumba enfeitada com azulejos de pastilhas
rosa e a cruz de prata suja de pó e sujeira e na placa de aço onde
se lia: “Aqui jaz um grande amor.” E o vazo com restos de flores
do mês retrasado.
Ela descruzou as pernas e suspirou. Os olhos
verdes claros, a pele branquinha. Ajeitou o vestido e se acomodou
direito. Ao vê-lo próximo abriu o sorriso de boas vindas.
– Olá,
Elisa.
Disse e encostou do lado. Timidamente
procurou a mão dela que gentilmente o permitiu que encontrasse e a
segurasse fraternamente.
– Você por aqui hoje?
– É verdade. Não é o meu dia de
visitas. Tenho novidade.
–
Ah...
Fez ar de surpresa, não dava pra ver os
olhos dele, pra encontrar algum rio de segredos.
– E qual seria?
– Ela perguntou afinal.
– Um
momento.
Enfiou a mão no bolso e retirou o mesmo que
outrora mostrou aos outros conhecidos.
–
Leia.
Fez o que pediu, leu as linhas
detalhadamente, abrindo a boca de espanto. Terminado, perguntou:
– É isso mesmo? É o que dizem no que
acabei de ler?
– É
sim. Tudo é verdade nas letras.
– Ah... Então irá pra...
–
Exato. E estou pra me despedir. É a minha última vez com
você...
Agora de rosto virado ela pode ver os olhos
e não encontrou nenhum rio de segredos. O lábio ainda tinha o forte
batom avermelhado, lábio grosso e molhado.
– Leva-me contigo.
– Pediu para ele.
Soltou
a mão dela e levou a sua a encostar-se à tumba.
– Sabe
que será impossível.
– Sim.
Falei por falar.
O silencio dominou ambos por minutos.
Ninguém olhou um para o outro, o vento leve refrescava, folhas das
árvores
balançavam no ar e pombas rastejavam as patinhas no chão de terra.
Ele não tinha mais o que fazer ali, desde que ela morreu há mais de
dezenove anos nunca deixou de visitá-la,
de contar as boas novas, as chatices do irmão, do trabalho que
começou logo após a morte dela. Ela reclama das visitas alegando
que não conseguiria descansar, na verdade não desejava que a
deixasse para sempre. Não ligava para reclamações, vinha disposto
e cheio de vitalidade. Horas longas a conversarem, a falar das coisas
da vida, das pessoas, sorrisos e comemorações. Dezenove anos nessa
rotina, sem preguiça, sem perder a razão de estar ali.
– Eu
visitei a família do menor que disparou contra você. – Disse ao
quebrar o silencio.
– Serio? – Perguntou o encarando de
surpresa.
– Sim. Foi tão... Tão triste ver a
família naquela condição. Não há como sentir raiva, ódio,
alimentar vingança e desejar a morte. Não tiveram culpa, o menino
também não, e por que desejaria
mal? Eu sou lá um deus que possui o direito de punir outros como eu?
De julgar e fazer regras do meu jeito? Penso que não.
– Fico orgulhosa de ti, muito orgulhosa.
Em
seguida voltou a falar.
– Mas
depois, depois não te verei mais...
– Está
na hora do seu descanso.
– Sabe que minha implicância é falsa,
jamais desejei que fosse embora.
– Sim, sempre soube. As coisas mudaram,
deram uma reviravolta que eu até no momento estou tentando me
equilibrar.
Ela tomou as mãos dele, as luvas macias a
tocarem a pele, os olhos espelhos coberto de brilho, estava bonito o
chapéu na cabeça, o corpinho magro no vestido. Não ouvia a
respiração da mulher, nem os suspiros, nem as mãos nervosas. Por
dezenove anos, essa mulher chamada Elisa foi sua esposa e num destino
sem previsão a levaram, o menor, a arma, à bala perfurando o peito,
sem resistência, sem tempo de salvá-la
e veio à perda e a vida desmoronou...
Depois da tragédia, recomeço, novos
caminhos e outra visão das coisas. Hoje é reconhecido pelo seu
trabalho, sabendo que o adoram nem desconfia quem seja, vivem criando
teorias. Não encontraria a melhor hora para despedidas.
– Eu
o liberto de mim, lhe dou asas para a tua liberdade. Está livre para
voar, passarinho meu. – beijou a testa. Beijo demorado, frio e
amoroso.
– Te levarei dentro do coração. –
Disse ele firme.
– Pois
vá e saiba que estarei com você onde quer que esteja.
– E
sempre haverá esperança. Acredite, existirá a esperança.
– Eu
acredito nela.
A despedida termina com leve beijo, o último
adeus simbolizado num simples beijo. Na frente dele a mulher
desaparece dizendo...
–
Sempre haverá esperança...
4
Ao terminar os degraus da escada, Arfa de
cansaço. Examina o pessoal subindo, todos com energia e com os
rostos despreocupados, mostram-se acostumados com o exercício que
praticam com bom ar agradável.
Toma folego e não entende como escalam tão
bem. E olha que não é tabagista e beber é de vez em quanto. Apaga
o mistério segue na entrada do enorme complexo.
De frente a estátua
do deus Hermes banhado pela luz do sol oferece uma boa vinda aos que
chegam. O deus mensageiro pintando o orgulho de protetor. Mesmo que
ninguém dê atenção, tinha seu motivo de guardião.
Para adentrar, portas automáticas abrem na
presença da pessoa e foi que aconteceu e ele desconfiado adentra.
Um extenso complexo se expõe, de brilho
rico e milhares percorrem o piso branco. Assustado, um moço do
interior com medo do novo mundo e da cidade grande. Há confusão de
vozes de
babel moderna que bagunça e confunde. Busca a direção, as pernas
travam, esforça, apressar. Prossegue.
Do alto, arquiteturas penduradas no ar,
telas filmam a movimentação, câmeras piscam sem parar, disparam
flashes sem assustar, vozes eletrônicas anunciam a cada dez
segundos. Avista um homem negro, alto, bem-vestido.
Escandalosamente o crachá se destaca no peito. Postura tranquila,
de gestos lentos e olhar de vigia.
– Por
favor, necessito de ajuda. – Diz para o homem.
– Sim?
Procura alguma coisa no complexo?
-
Sim, sim. Espere.
Retira o cartão e o homem lê.
– Humm. É dos privilegiados. Venha
comigo, senhor.
O homem negro toma a dianteira coloca os
braços pra trás caminha tranquilamente.
Ao chegar, o homem abre a porta de vidro e
estendendo o braço fala:
–
Aqui, senhor. É melhor se apressar.
–
Obrigado.
Mais uma vez surpreso. Surpreso com a
quantidade de gente, do enorme trem Maria Fumaça nos trilhos. Uma
moça de gesto gentil se aproxima.
–
Pois, não?
– Ah.
Mostra o cartão e o bilhete a moça examina
calculadamente.
– Me acompanhe, estamos quase na hora do
embarque.
Leva-o para fila formada e o deixa dizendo
que não demorará o embarque. Agradece, observa-a indo para outro
lado.
As vozes eletrônicas anunciam informações
a rodo, informações sem sentido, necessárias, nada causava pânico.
Na fila o falatório domina. Homens,
mulheres, idosos e crianças distraem nas conversas do dia a dia, pra
esquecer a espera.
Na frente a
mulher gorda sem malas, de sacola plástica recheada de revistas.
Finalmente. Olha o relógio e a hora. Falta um minuto.
O calafrio percorre o corpo. Ansiedade?
Talvez. No cartão e no bilhete de cor caramelo, título
em letras douradas e o papel perfumado de perfume desconhecido: “É
um dos sorteados no Aqualung Locomotive. Compareça na data marcada
no endereço indicado. Caso de duvidas consulte-nos no horário
comercial. Ass: A Diretoria.”
As notícias
corriam soltas. Não havia quem não comentasse a viagem na Maria
Fumaça modernizada do século XXI, capacidade para trezentos
passageiros e o destino que não recusaria participar. Ninguém
conhecia o destino que a máquina
faria e desejavam serem privilegiados. Sorte que não recusou. Sim,
teve duvida, foi quebrada brevemente. Fez despedidas, deu lugar no
trabalho para uma senhorinha e recebeu a liberdade da ex-esposa.
Liberdade simbólica.
Finalmente.
Um homem vestido elegantemente se pronuncia.
– Bom dia, senhoras e senhores.
Bem-vindos ao Aqualung Locomotive. Creio que cada um recebeu nas
respectivas residências o bilhete e o cartão. O cartão é uma
espécie de passagem que acusa na lista dos sorteados. Espero que não
tenham esquecido ou não poderemos verificar a lista. Nós da
diretoria agradecemos por acreditarem no nosso projeto, projeto de
treze anos, desenvolvido com esforço, sonhos a realizar o que mais
almejamos. Boa viagem, pois nada no mundo se comparará ao Aqualung
Locomotive. Muito obrigado e adeus.
O homem parte tomando a direção da saída
junto com dois homens de terno. Agitação, falatórios mais altos,
isqueiro acesso, fumaça, cheiro de cigarro, alguém com sede, com
frio na barriga, com pensamentos de que não prevê o que virá.
Olhando pra fora da porta de vidro o complexo não parava de se
movimentar. Pra cima e pra baixo, gente despreocupada, considera o
que vem pra começar não era do interesse deles. Sem curiosos, sem
parentes a vida continua como um dia qualquer. O primeiro apito da
Maria Fumaça anuncia seu
chamado.
O calafrio aumenta mais.
A mulher gorda vira-se e sorri. Repara no
medalhão de prata modelando o peito loiro. A fila dá os dois
primeiros passos.
O segundo apito surge. Após verificação
do nome é acomodado no vagão, não existia a coisa mais bela que o
Aqualung Locomotive. Poltronas confortáveis, o corredor perdia de
vista, carpete avermelhado enfeita o chão, janelas de cortinas
japonesas, encanto e tecnologia no instrumento de locomoção.
Acomoda-se na poltrona do corredor e a
mulher gorda na poltrona da janela. Tanto faz a mulher ali, quando
acabasse não a veria mais, mas tem curiosidade de descobrir o que
ela pretendia com a viagem. O que buscava? O que procurava? Corria
atrás de algum objetivo? Não via nela do que uma vida normal, sem
muita coisa importante. Não trouxe consigo bagagem somente sacola
plástica com revistas.
Era tortura aguardar o acomodamento de
todos. São trezentos passageiros, tarefa cansativa de realizar,
felizmente nada escapou do controle e os sorteados na poltrona sem
parcela de reclamação.
O terceiro apito. Desta vez forte, como
grito a distancia. O motor silencioso mal se ouvia, o mar de
falatórios. Hora errada de lembrar o passado. A mulher puxa
conversa.
– Ruim ficarmos em silencio quando se há
conversas. – Diz ela.
A voz não é desagradável, o que deixa
mais tranquilo.
– Acho que não. Quebra o desconforto,
não é mesmo?
– Completamente. Bom, se não houver
conversa, ao menos tive a inteligência de trazer as revistas.
Passatempo gostoso e saudável.
Sente
medo ao observar a cara de safadeza dela.
Retira a revista da sacolinha e tamanho foi
o susto ao saber qual revista que a mulher trazia.
Na
capa uma jovem modelo de cabelo claro deixava a mostra o seu volumoso
busto, de boca aberta e olhar de sedução.
Reconhece a revista, igual ao que estava na
casa dele.
Segura o susto, engole a surpresa. A mulher
não dá atenção às matérias, abre a revista na parte mais
interessante, a sessão de contos.
– Conhece? – Pergunta mostrando a
página.
– Não,
não.
Responde gaguejando. Se respondesse que
conhecia abriria as portas de segredos e seria motivo pra liberar
perguntas.
– Não há maneira ótima de ler isso.
Adoro, me excita e o cara é muito bom. Entende direitinho, amo as
histórias
dele.
–
Verdade? É interessante as histórias da revista?
– Bota interessante nisso. Meu sonho é
conhecê-lo e até fazer uma coisa bem gostosa com ele. – Ri. –
Agora é tarde, estou aqui, mas levo-as comigo pra sempre.
Fica sem jeito ao reparar a maneira da
mulher.
– Leia o trecho: “Senti-me realizada
com aquele corpo me amando. Os lábios batalhando contra os meus,
deixando-me excitada, explodindo de prazer, não sei o quanto me
seguraria pra explodir de gozo e felicidade...” Ai... Não é
excitante...?
–
Percebo que sim.
– Se o cara soubesse como faz sucesso com
as mulheres...
Ele
ri, se ajeita na poltrona, a Maria Fumaça abre o último apito de
aviso.
Uma
voz feminina começa a falar:
– O Aqualung Locomotive está pronto pra
começar a viagem. Estejam confortavelmente acomodados e ótima
jornada. Obrigada.
As portas do vagão são fechadas e a Maria
Fumaça lentamente começa a locomover. O silencio vence o falatório.
A mulher entretida na revista de conteúdo adulto nem se dá conta de
que é a escolhida a estar ali dentro, boa escolha para distração,
arrepende de não ter feito o mesmo. De soslaio lê o nome do conto:
“Aquele anjo de Carnaval.” Disfarçadamente abre sorriso, não
havia mais segredos pra esconder a satisfação de sentar do lado da
fã, de saber do sucesso garantido. Que dona Nina continue entretendo
os leitores, os leitores querem distrações, boas ou más, não
importam quais sejam. De boca fechada não contaria para a mulher
quem ele é...
Alegre, reconhece mesmo sendo senhor de
idade, homem muito famoso no mundo das distrações.
5
Ao despertar fica desorientado. No vagão,
não há passageiros. A mulher gorda não está. A sacola com
revistas de conteúdo adulto largada no chão e duas revistas abertas
na poltrona. Não há passageiros, somente ele e objetos largados pra
traz. As portas abertas e o Aqualung Locomotive com motor desligado.
Reina silencio. Não recorda de nada, o que lembra é o aumento da
velocidade, de ver a imagem da mulher sumir aos poucos e o clarão
branco. Depois, depois não viu nada.
Desconfiado, vai para a saída do trem. Uma
cidade abre-se, rica, iluminada e sedutora. Sua cidade, essa que é
seu porto seguro, de grandiosas realizações, de conquistas e
perdas. Sua cidade do passado ou do presente? O cheiro não está
igual ao que sentia, havia mistério no cheiro. Não, não o cheiro
da cidade que andou há anos, um cheiro novo ou antigo, não
conseguia explicar.
Aos poucos, pessoas surgem acompanhadas,
solitárias, com animais, contentes, apressadas, descontraídas.
Está de costas de vestido branco. O chapéu
a embelezar o cabelo e o guarda-chuva
a proteger do sol. Chega ao destino e o que busca alguns metros
dele.
–
Elisa? – Chama.
Na
primeira impressão o rosto dela se contrai de satisfação para se
contrair de descontentamento.
– Por
que demorou? Estou horas esperando? – Reclama.
– Desculpa. Tudo atrasou...
Faz o calar com a mão na boca dele.
– Liga
não bobo. Acabei de chegar. Vamos?
Ela entrega o braço para encaixar o dele e
dá partida a caminhada.
–
Sempre haverá esperança...
–
Concordo. Tem toda razão. – Ele responde encarando o rosto
fino e branquinho dela.
Tomam a direção pra desaparecerem no
infinito da rotina da cidade. Não existiriam barreiras e tragédias
e a jornada, essa não tem parada.
(Rod.Arcadia)
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