segunda-feira, 31 de março de 2014

A Deusa Acorrentada





O som do relógio a despertou, meio a contragosto.
Os olhos azuis, piscaram. Devagar, abriram para se casarem, com a claridade.
O rosto amassado e o cabelo em desordem, desenhavam um poema marginal.
O relógio reclamava sem razão, e a mão, o calou, como uma sentença ríspida.
Dirigiu-se ao banheiro, e escovou os dentes. Urinou. Olhou no espelho e não encontrou nada de diferente nela.
Voltou, ligou a TV, apenas para ter um mínimo de barulho no ambiente. Não gostava do silêncio, o silêncio afligia a alma.
Na TV, algum programa barato, na programação do dia. Não comprou a TV a cabo, pelo menos, não ouviria tanta besteira, apesar, que não se importava muito com isso.

Viajou para cozinha. Lá, a pia era um oceano carregado de pratos a deriva. Com preguiça, lavou o bule de café e lançou água dentro dele, para ferver.

Esperou um pouco. Logo a fumaça e o perfume do café, escaparam pela janela do prédio, para ganharem o ar da cidade esfumaçada de poluição.
O corpo não descansou direito. Chegou quase as duas da madrugada. Isso porque, inventou a famosa desculpa de dor de cabeça. Mas, o corpo cansado, exigia que tirasse folga, senão, gritaria por fuga. Ela não obedeceria, daria um jeito, havia tantos remédios para animar e permanecer disposta, que esqueceria o cansaço.
Bebeu o café escutando as baboseiras da TV.

Levantou, voltou ao banheiro para se rever no espelho. 

Alguma coisa errada, diferente. Não soube o que tinha de errado. O corpo? Uma doença florescendo? Nada. Desconhecia o que estava errado.

Um pouco mais tarde, a amiga chegou. A menina, escandalosa em se vestir, veio reclamar da última noite. Levou beliscões nas nádegas.

Como prova, abaixou a calça para mostrar os hematomas.
Convidou a menina para almoçar. Não tinha comida, e sim lanche. Não teve tempo para ir ao supermercado. Sobrou o pão de ontem de manhã.

A amiga recusou. Passou pra deixar um beijo nela. Tinha compromissos.
A amiga se despediu. Queria que ficasse mais um pouco, uns assuntos do trabalho a tratar.
A TV ligada sem atenção, encobria o ambiente. Faltava muito pra noite chegar, e o corpo reclamava sem pausa.

O relógio chamou quinze minutos atrasados. Estava de protesto por ter sido sentenciado de manhã.

Correu pra tomar banho e se arrumar, enfeitar-se, colocar saia curta, batom nos lábios, brincos grandes nas orelhas e o piercing no nariz, era um charme a mais. A bolsa a tiracolo, uma alegoria para as mulheres. Ganhou à noite celebrada.
Chegou cinco minutos atrasada. O chefe olhou de cara feia. Apressou-se, correu para o quartinho, onde as moças davam os últimos retoques de beleza.

Ela ajeitou o busto e ergueu sua miniblusa rosa. Penteou os cabelos e verificou o piercing. Nada desordenado, o serviço chamava
há tempos.
A amiga chamou com um grito.

Ela a viu, sentada com dois homens, que deslizavam as mãos, feito balé nas pernas dela.
Ficou dois minutos sozinha. Logo a primeira companhia apareceu. Um homem, que nunca esteve no local. Tinha cicatriz no rosto. Levou-o ao quarto, mesmo tendo escutado a reclamação do valor do serviço.
Cinco minutos. Cinco minutos que duraram. Não houve palavras, nem nomes ditos. Cinco minutos e o valor lançado na cama, sem reclamações.
Entrou no banheiro. Lavou-se. Pensou que tudo poderia ser diferente. Então, o que deveria ser diferente?
Em três minutos, saiu. A amiga não estava mais no lugar que se encontrava. Suspirou, não sabia que noite teria, para esse dia.
Foi embora tarde. Três da madrugada. A rua mais vazia, do que movimentada. Movimentos somente dos automóveis.
 Seguiu a pé para casa. O prédio não era longe, e ela acostumava comprar um hot dog na chapa do carrinho do Alemão.
Atravessando o semáforo, ao lado dela, três personagens femininas a acompanhavam. Uma era menina, criança. Tinha seus doze anos, vestia vestido marrom, os cabelos claros e cacheados e de echarpe no pescoço. A outra, uma moça de uns trinta anos. Usava saia preta, os cabelos curtos e pretos, argolas nos braços e sapato vermelho de salto alto. A última, uma idosa, estava de chapéu preto com véu, que encobria a parte dos olhos. Uma blusinha de lã enfeitava seu corpinho magro, demonstrava uma cara feia e costurava em linhas de crochê.
Ela prestou atenção nas três personagens. Plantou dúvidas, se havia encontrado com elas algum dia. Não ali, mas em outro lugar. No entanto, a moça começou a puxar conversa, ao chegarem na outra calçada.
– Olá, bonitinha. Indo pra casa?
– Besta. Onde já se viu, perguntar se está indo pra casa? – Disse a menina, dando risinhos.
– Não gosto dela. Tem cheiro de homem. Homem fedido. Ela fede, fede homem. – Disse a idosa, numa voz de papagaio.
– Não ligue pra minhas irmãs. São chatinhas. – Disse a moça.
– Irmãs? – Perguntou surpresa.
– Sim, irmãs. S
omos três. Ou você é cega? – Disse a menina.
– Não seja mal-educada. – Disse a moça, fazendo uma cara feia para a menina, que mostr
ou a língua.
– Ela fede. Então não gosto dela. Fede homem. – Reclamava a idosa, que não parava de mexer no crochê.
- Mas, quem são vocês? Nos conhecemos?
– Oh, não sabemos. – Respondeu a moça.
Ela não quer falar, mas te conhecemos sim. – Falou a menina, encarando a irmã.
– Oh, não ligue. Ela tem o temperamento endiabrado. – Esbofete
ia a cabeça da menina.
– Sinceramente nunca as vi, na minha vida.
– Porque você não sabe quem realmente, é na verdade. – Respondeu a menina.
– Ela não sabe, por que fede homens. Há homens nojentos nela. – Fal
ou a idosa.
– Bonitinha, do que sabemos, é o que adormece dentro de você. Falta alguma parte, uma parte vazia,
que não consegue se completar. É nessa parte, que precisa se encaixar. É a peça que falta, para voltar ao seu movimento. – Explicou a moça.
Ela a encarou, num gesto de incompreensão.
– Eu, eu não entendi.
Ah, mas seu dia de compreender, já chegou. Nem tudo permanece adormecido, por muito tempo. – Disse a menina, que pulava serelepe.
– Deusa acorrenta! Deusa acorrentada! – Repeti
u a idosa insana.
– Não lig
ue. Minhas irmãs, não sabem se comportar.
Quando chegaram ao carrinho do Alemão, as três se despediram e desapareceram. Nunca as encontrou na cidade. Pelo que recordava, não.
Depois que comeu o hot dog, voltou pra casa. Tomou banho. O corpo lhe deu um sermão. O dia tinha sido, muito puxado para ela.
Desabou na cama. As três personagens, não se apagaram da sua memória. Quem seriam ou o que faziam, não saberia, responder.

O relógio a acordou em gritos histéricos. Pra descontar da afronta, o jogou no chão. Ele nem emitiu um choro.No banheiro, urinou e escovou os dentes. Em seguida, ligou a TV. Dessa vez, deixou no canal de desenho.
Ela sonhou com um lugar. Um lugar de maravilhas, de belas pessoas fortes. Pessoas especiais, sem defeitos, sem erros humanos.

Gente que estava, além da compreensão, longe das leis humanas.
O lar, morada no céu, era Olympus. E o pessoal, a chamavam de irmã. E o seu corpo, era diferente, não esse que, habitava nela. Era sem manchas e sem feridas, e nenhum homem, o violou ou explorou. Nesse lar de maravilhas, ela pertencia, vivendo maravilhosamente, feliz.
Tinha até um nome. Não se lembrava dele. Possuía um nome quando, a chamavam: Adéia? Amistiça? Amara? Afro… Era afro alguma coisa. Não lembrava de nada.

Olh
ou-se no espelho. Percebeu que o corpo, não a pertencia. Estava tudo errado e machucado. Não era dela. Teve dúvida:
– Quem sou eu? Quem?

Encarando sua imagem refletida, os pensamentos viraram metralhadoras de dúvidas e perguntas. Se lembrasse do nome…
– Afro… Afrodisíaco? Afro…

Em combate com a memória, ela inutilmente, combatia em vão.
– Não. Não sei quem sou. Não sei…

Retornou para o quarto. A TV, era um baile de sons vomitados. Ela se contentou a permanecer na mesma sintonia de chiados, sem protestar. O conformismo, um rotineiro, vencedor.
Do lado de fora, vigiando sua janela, três figuras. Três mulheres. A criança, a moça e a idosa.
– Pobre bonitinha… – Lament
ou a moça.Pobre nada! É uma deusa acorrentada, pelos mortais. Ninguém mais a reconhece. Nem mesmo lembra, como se chama. – Disse a menina.
– Afro… Afro…
Não é deusa. Não, não é. Fede a homem, fede a homem. Não gosto dela. Não gosto! – Reclamava a idosa, no seu crochê.
As três, desapareceram.

A lufada de vento, invadiu o quarto. Mais uma vez, entrou em combate com as dúvidas.
– Afro… Afro-americana?

Pausou. E suspirou. Estava vencida.
– Eu não sei quem sou…

A TV ligada, conversava sozinha. Tentou buscar nela, uma mínima atenção. Uma chantagem, uma tragédia, qualquer assunto. Tudo em vão. Sua birra no ambiente, não trouxe nenhum efeito…



















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